Denise Fraga: 'O amor não dá conta de amar só aquilo que se compreende'

Ele gostava de arrumar a sua gaveta de meias. Ordenava por cor, com capricho: marrons, cinzas, pretas e brancas. Um dia, ele ganha da filha uma meia de listrinhas. Não sabe onde pôr. Põe lá no fundo da gaveta. Não se sentia muito confortável usando a tal meia de listras. Passa o tempo, uma de bolinhas. No outro aniversário, uma vermelha. Ele não sabe o que fazer. Vai pondo as meias diferentes no fundo da gaveta. Até que elas começam a aparecer e pressionar a sua arrumação monocromática. Ele inaugura outra gaveta. E não a abre nunca mais. Ele não via. Mas sabia.

Não tem mais jeito. Abriu-se a cortina. Talvez o melhor efeito colateral da vida virtual sejam os gritos que foram finalmente ouvidos em meio ao vozerio histérico e banal comum às redes. Ainda que atordoados pela profusão de dancinhas no TikTok e taças de champanhe nunca bebidas à beira das piscinas, passamos a ouvir expressões como homofobia, machismo, racismo, LGBTQIA+, cis, não binário etc. Não dá mais para dizer que não ouvimos. As vozes estão aí. Tudo está escancarado. Há um tempo novo em curso. Mas muitos não querem participar do novo jorro da vida e continuam tentando desesperadamente manter seus privilégios escancarados. Até se organizam em ideologias e seitas para tentar segurar o que lhes escorre pelos dedos.

Não dá mais para fugir da realidade atual que vemos nas redes e ao nosso redor: "Tudo está escancarado. Há um tempo novo em curso", diz Denise Fraga — Foto: Alex Green no Pexels

Aquela sua tia, que vivia ali, confortável em sua cegueira de mulher recatada, prendada e do lar, começou a não entender nada, a reclamar que “agora não se pode falar mais nada” e correu para se abrigar num grupo de WhatsApp que desse alguma ordem ao “caos”. Sinto muito, titia, está visto. Abriu-se a cortina, você não vai mais conseguir esconder, nem de si mesma, a homoafetividade do seu filho. As vozes agora são ouvidas por toda gente.

O mundo ficou mais complexo, é fato. Na verdade, sempre foi. Mas podia-se escamoteá-lo em doutrinas e comportamentos, assimilados pelas comunidades que ainda mantinham crenças próprias, herdadas de suas tradições. Acontece que as janelas foram abertas pelo mundo conectado. E alguns olharam para fora. Na verdade, todos olharam, mas apenas alguns assumiram ver. E o fato é que não sabem o que fazer. Como transitar num mundo tão múltiplo e diverso? Como caminhar no terreno movediço desse tempo veloz que oferece uma novidade a cada instante?

Não é fácil. Mas sinto muito, não tem caminho de volta. Há que aprender a surfar. Entender cada onda, em segundos, e aproveitar a delícia da maleabilidade do terreno, daquilo que é móvel e múltiplo, que se move e modifica, e nos ensina todo dia. Nem todos estão dispostos a aprender. Negam. Tentam construir seus muros. Mas percebem que sempre sobra alguém do lado de fora. Outros abrem pequenas frestas clandestinas para olhar o vizinho. Não adianta. Todos estão vendo. Meninas não vestem rosa. Meninos não vestem azul. As crenças não fazem a verdade. Nem que se queira, não dá para negar aquilo que se viu. Ainda que tapem os olhos, ouve-se a barulheira lá fora.

E o amor não dá conta de amar só aquilo que se compreende. A tia ama o seu filho gay. E vai sentir saudade dele se ele partir para o mundo que não cabe dentro dela.