• Silvia Lisboa
Atualizado em
ANTIBIOTICOS-CF301-SERINGA-copinho (Foto: Eduardo Esvezia / Editora Globo)

 (Foto: Eduardo Esvezia / Editora Globo)

A estilista e professora de moda Ananda Sophie e o publicitário Leandro Tomás de Andrade, ambos de 34 anos, adiaram a entrada de Vicente na creche por medo das infecções. O pequeno, que está prestes a completar 3 anos, nasceu prematuro, e os pais resolveram poupá-lo até os 2 anos. Mas a estreia na escola não foi por isso menos tortuosa. Vicente enfileirou infecções respiratórias em pleno verão de Porto Alegre, onde a temperatura se mantém na casa dos 30° C, com pouca variação. Foram três infecções bacterianas, em janeiro, fevereiro e março, que fez seus pais ligarem o alerta. “Ele teve alergia a um antibiótico. Amanheceu todo empipocado, e nos assustamos”, disse Ananda. Na emergência, o pediatra substituiu o remédio por outro, e Vicente reagiu. Mas Ananda e Leandro decidiram investir em prevenção. Consultaram um pediatra especializado em homeopatia e iniciaram uma terapia antigripe que deu certo. “Ele passou o inverno sem ter nada mais grave”, disse a mãe, aliviada. Os antibióticos costumam trazer sentimentos conflitantes aos pais. Ao mesmo tempo em que são vistos como a bala de prata em muitas ocasiões – sair com uma receita do consultório dá a sensação de que seu filho vai sarar rápido –, a prescrição indiscriminada é uma preocupação não apenas da família, mas mundial. Estima-se que um terço dos antibióticos seja receitado sem necessidade, de acordo com um estudo da revista da Sociedade de Doenças Infecciosas Pediátricas, do Reino Unido, que acompanhou mais de 6,8 mil crianças em 41 países diferentes. E o uso do medicamento só aumenta: passou de 21,1 bilhões de doses diárias em 2000 para 34,8 bilhões em 2015 nos cinco continentes, um salto de 29%. Em ranking de 65 nações divulgado recentemente pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil aparece na 17ª colocação dos que mais consomem antibióticos (22 doses diárias), à frente da média dos europeus (18 doses), e de países como Canadá
(17 doses) e Japão (14 doses).

Mas é importante que se diga: desde a descoberta da penicilina, o primeiro antibiótico, criado pelo médico e cientista escocês Alexander Fleming, em 1928, os antimicrobianos salvaram milhões de vidas e continuam sendo aliados fundamentais contra bactérias, das mais “bobinhas” às mais perigosas. Estima-se que desde a Segunda Guerra, quando os antibióticos começaram a ser utilizados em maior escala, cerca de 200 milhões
de vidas foram salvas pelo achado de Fleming. O problema hoje é o exagero na sua prescrição.

Bactérias resistentes

Além do número desmedido de receitas, ainda há o uso irresponsável. Uma pesquisa da American Academy Pediatrics revelou que um grande número de pais admitiu ter dado aos filhos antibióticos receitados a outras pessoas. Muitos aproveitaram sobras de parentes e amigos.

O abuso, desde a infância, leva ao excesso do desenvolvimento das superbactérias. A OMS vem alertando para o fato de estarmos prestes a entrar numa era “pós-antibiótica”, em que parte dos micróbios não é debelada pelas drogas disponíveis. A entidade estima que, se nada for feito, as superbactérias serão as principais responsáveis por mortes em 2050.
Embora seja a mais assustadora, a resistência aos antimicrobianos disponíveis não é a única preocupação. Como o pequeno Vicente experimentou, literalmente na pele, com bolotas que cresceram por todo o corpo da noite para o dia, esse tipo de medicação costuma trazer também problemas para a flora intestinal e, acredita-se, seja uma das causas de doenças autoimunes. Nos Estados Unidos, onde existem fartas estatísticas médicas, erupções cutâneas e comichões levam às emergências 70 mil crianças por ano, de acordo com um levantamento feito entre 2011 e 2015. Os dados são do Centro de Prevenção e Controle de Doenças americano. Antibióticos antes dos seis meses de vida também estão associados a alergias no futuro, podem tornar a malária mais intensa e seu uso contínuo estaria ligado ao aparecimento do diabetes tipo 1.

O motivo por trás disso seria a desorganização da flora intestinal causada por este tipo de medicação. Quando tomamos sem necessidade, as doses matam os micro-organismos “bonzinhos” que habitam nosso intestino, provocando uma bagunça interna que abre o flanco para doenças (leia mais no quadro “Siga as instruções à risca”). A advogada Priscila Wias, 38 anos, por exemplo, diz se sentir mais segura quando não sai de consulta com um antibiótico na mão. Ela vive duas realidades bem distintas com seus dois filhos, Isadora, 8 anos, e Max, 5. Desde que nasceu, Max só tomou antibióticos em duas ocasiões, enquanto sua filha já passou invernos tomando-os em sequência. “Eles têm pediatras diferentes, que seguem linhas de tratamento diferentes”, diz. Priscila não contesta o diagnóstico do médico da filha – até porque as crianças podem, sim, ter infecções bacterianas consecutivas. Mas ela reconhece que pode ter havido um excesso. “É muita diferença nas condutas, e remédio demais faz mal”, lamenta.

Pressa para resolver

Mas por que, apesar dos riscos, os antibióticos continuam a ser recomendados com tanta frequência? Existem alguns motivos, na visão dos especialistas ouvidos pela CRESCER. Um deles, segundo o pediatra carioca Daniel Becker, médico do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e criador do site Pediatria Integral, tem a ver com um paradigma social típico da nossa era, ligado ao imediatismo e ao consumo. “Você acredita que as coisas se resolvem de forma simples e imediata, que existe uma solução que vem de fora prescrita por um terceiro que pode resolver tudo. O mercado é quem se dá bem”, diz Becker. A pressão da indústria farmacêutica é bem grave em alguns casos. “Como ocorre com o antibiótico Benzetacil”, observa a pediatra Silvia Regina Marques, presidente do departamento de infectologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo. “Ele só serve para dois tipos de bactérias: para tratar sífilis e amigdalite. Mesmo assim, ainda é muito prescrito.”

Becker acredita que nosso sistema de saúde também favorece a prescrição além da conta, com a recorrência sistemática dos pais às emergências. Todo pediatra entende o desespero que dá ver o filho febril, prostrado e sem apetite. Mas a solução, com frequência, não é correr para os ambulatórios – reservados para emergências mesmo, acidentes, piora súbita ou dificuldade respiratória. Isso porque, nesses locais, a tendência é sempre medicar em excesso. “Não é porque o profissional da emergência é ruim, mas é porque ele tem medo de deixar uma infecção passar. Na dúvida, receita o antibiótico. Não é um problema ou um erro médico, é uma questão de contexto”, diz Becker.  Segundo o pediatra, as equipes de saúde da família melhoraram muito esse panorama. “Só acompanhando a criança é que o médico consegue evitar a prescrição exagerada.”

ANTIBIOTICOS-CF301-SERINGA-copinho (Foto: Eduardo Esvezia / Editora Globo)

 (Foto: Eduardo Esvezia / Editora Globo)

É vírus ou bactéria?

Claro que só um profissional pode diagnosticar se o seu filho foi pego por vírus ou bactéria, por isso, é indispensável levá-lo a uma consulta. “Garganta irritada e secreção não significam, necessariamente, infecção bacteriana. É preciso que haja um estado geral da criança bem comprometido”, explica a pediatra Silvia Marques. Em geral, os vilões são os vírus, responsáveis por 90% das infecções que rondam as escolas. Grande parte das tosses que costumam deixar crianças e pais insones, por exemplo, é causada por vírus. E existem alguns sinais típicos para identificá-los. “A criança tem febre que cede com antitérmicos, e volta a brincar e a se interessar por comida.

“Não é caso de ir para a emergência. É caso de chamar a vovó para ajudar”, orienta Becker. Existem soluções caseiras e comprovadas cientificamente que ajudam a debelar os sintomas: muito líquido, soro no nariz e uma prosaica colher de mel para a tosse antes de dormir. Estudos mostram que uma dose ajuda a reduzir o cof-cof noturno e o desconforto – mas a receita só é indicada a crianças acima de 1 ano, por causa do risco de botulismo. Ao escolher o tipo, eleja os mais escuros, que apresentam um poder antioxidante e antimicrobiano maior do que os clarinhos.

"Interromper o tratamento depois da melhora dos sintomas favorece o surgimento de bactérias resistentes"

clécio homrich da silva, professor de pediatria da universidade federal do rio grande do sul

Mas e se o quadro não cede? Há infecções virais bem persistentes, que se estendem por quatro ou cinco dias. Faz parte. No caso de piora nos sintomas, volte ao médico. Um estudo feito por cientistas das universidades de Bristol, Southampton, Oxford e da King’s College de Londres descobriu que os antibióticos foram mais efetivos quando aplicados após uma leve piora em vez de imediatamente após a criança cair de cama. Ou seja, é melhor esperar um tempo para a prescrição ser mais certeira e evitar que seu filho tome remédio à toa. Procure segurar a ansiedade. Se o quadro piorar, os pais logo perceberão. “Febre por mais de quatro dias, ou mesmo criança sem febre, mas prostrada, sem sorrir, sem brincar, são sinais de que pode estar havendo infecção bacteriana”, alerta o pediatra Daniel Becker.

Para driblar os incômodos da medicação, iogurtes com lactobacilos ajudam a reequilibrar e a reorganizar as bactérias intestinais e dão uma força às defesas do corpo. Um estudo de revisão veiculado no European Journal of Public Health que analisou 12 pesquisas em diferentes países, indicou que o uso regular de probióticos pode reduzir, inclusive, a necessidade de antibióticos em até 53%. Um ótimo aliado na luta contra as superbactérias.

Primeiro, os mais fracos

Dependendo do antibiótico, é possível que a criança apresente reações como diarreias, vômitos e alergias na pele. A orientação é suspendê-lo e voltar ao pediatra. Hoje, o protocolo recomenda iniciar o tratamento com antibióticos chamados de primeira escolha. “São drogas mais fracas, porque às vezes a bactéria é mais fraca”, explica Mariane Franco, presidente do Departamento de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). O avanço científico conseguiu especificar os antibióticos para não utilizarmos desnecessariamente os de amplo espectro, mais agressivos, capazes de eliminar qualquer micróbio – inclusive os “do bem”, diz Franco. Em geral, os pais ficam chateados quando o tratamento precisa ser reiniciado, mas para evitar as superbactérias, todo cuidado é pouco.

Siga as instruções à risca


Atenção ao horário, à dose correta e ao tempo de uso. “Interromper o tratamento depois da melhora dos sintomas favorece o surgimento de bactérias resistentes”, alerta o médico Clécio Homrich da Silva, professor de pediatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cada droga tem um tempo de atuação no organismo. Para eliminar as bactérias ruins, ela precisa agir naquele período e na dose estipulada. Dar menos ou em horários erráticos é como atirar sem acertar o alvo – os bichinhos não morrem e saem mais fortes. Os antibióticos mais comuns para crianças são aqueles em solução aquosa: um pó que deve ser dissolvido em uma quantidade específica de água. Vale tudo para fazer seu filho tomar direitinho. Se ele não ingere toda a dose ou o faz, mas vomita, a recomendação é falar com o pediatra para que ele avalie se é o caso de repetir o mesmo volume ou aguardar o próximo horário. Importante lembrar que o que sobra depois do tratamento deve ser descartado.
Ainda há os injetáveis que, em geral, são indicados para os casos mais graves.

Antibióticos no seu prato


A ONU já declarou as superbactérias como uma situação de crise na saúde. E os antibióticos utilizados em animais criados para consumo humano seriam os principais vilões. Nos EUA, por exemplo, 70% dos antibióticos são usados nos animais – e vão parar no prato da população. Conforme Mariane Franco, presidente do Departamento de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria, o uso preventivo dessas substâncias não é recomendado em humanos, mas na produção de carnes é recorrente. Já há iniciativas na Holanda e na Dinamarca para reduzir a aplicação de drogas na criação de aves, suínos e gado, mas os esforços ainda não surgiram por aqui. Enquanto isso, resta ficar mais atento à escolha nos supermercados. Algumas marcas já têm diminuído ou abolido a administração desses medicamentos – inclusive, usam isso como apelo de venda –, e o consumidor que preferir pode se valer disso.