• Texto Nathalia Ziemkiewicz / Ilustrações Luiza Verone
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No bingo da maternidade contemporânea idealizada, a publicitária Manuela Papa, 34 anos, completou a cartela. Sua filha Liz nasceu há um ano e meio de parto natural, segue na amamentação em livre demanda, nunca usou chupeta e mamadeira, tem uma criação com apego que inclui cama compartilhada, recebe alimentação saudável preparada pela mãe (nada de industrializados e açúcar), não fica exposta a telas e está sendo educada de forma não violenta (sem grito e castigo) em um sítio no interior de São Paulo.

Manuela, que pausou a carreira para exercer a maternidade em tempo integral, tem muita dificuldade de “terceirizar os cuidados” e deixa Liz com os avós maternos apenas algumas horas aos sábados. Embora se orgulhe das próprias escolhas, vez ou outra ela sucumbe à exaustão: “Já pensei que ser picada por um escorpião para ficar uns dias descansando no hospital não seria tão ruim”, diz.

334 Mae Suficientemente Boa (Foto: Luiza Veroneze sobre Getty Images)

334 Mae Suficientemente Boa (Foto: Luiza Veroneze sobre Getty Images)

Essa geração de aspirantes a supermãe, que tem a perfeição como meta inegociável, carrega o peso de expectativas e cobranças diferentes daquelas experimentadas por suas mães e avós. Se renunciar à vida profissional e social em favor dos filhos era algo natural noutras épocas, hoje a ambição de muitas mulheres é conjugar tudo com excelência. “Antes, o importante era manter a casa limpa, a criança estar arrumadinha, falar ‘bom dia’ e tirar boas notas na escola. Agora, há uma pressão para que você saiba sobre linhas pedagógicas, coloque cinco cores de alimentos no prato do filho, construa brinquedos artesanais...”, afirma a psicanalista e educadora parental Elisama Santos, autora de livros sobre educação não violenta e colunista da CRESCER. Também se espera que a mãe acolha os sentimentos da criança em uma cena de “birra”, por exemplo, e explique para ela o que é raiva, frustração e por aí vai...
 

"Renunciar à vida profissional e social em favor dos filhos era algo natural"

 

A demanda sobre a mulher cresceu e a rede de apoio diminuiu, especialmente nos centros urbanos. Para o psicólogo e também colunista da CRESCER Alexandre Coimbra Amaral, autor de A exaustão no topo da montanha (Editora Paidós), quando as pessoas moravam próximas ou na mesma casa de familiares, compartilhar o cuidado com as crianças era mais normal. Havia, inclusive, a ideia de que qualquer adulto poderia mandar no seu filho na sua ausência. “Hoje, a vida é menos coletiva e o acesso a teorias como disciplina positiva estão isolando ainda mais algumas mães. Você não vê nos familiares e amigos a mesma disponibilidade em aprender. Isso ajuda a construir a exaustão materna”, diz Alexandre.

Aquela tradicional transmissão do conhecimento não se dá mais de mãe para filha. É a filha, agora no papel de mãe de um bebê, quem dita: “Eu li no Instagram que, segundo evidências científicas, não pode botar para dormir de bruços! Não é cólica, é salto de desenvolvimento! Não pode amassar comida, tem de oferecer BLW!”, costuma dizer esse tipo de leitora.

334 Mae Suficientemente Boa (Foto: Luiza Veroneze sobre Getty Images)

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Sob pressão das redes sociais

A internet aumentou o acesso a informações relevantes sobre parentalidade, mas talvez seu consumo excessivo tenha tornado as mães mais inseguras, confusas e alvo permanente de críticas. “Sem a sabedoria intergeracional, elas ficam sujeitas às redes sociais, em que existem muitos palpiteiros e manuais autoritários, deterministas ou que só levam a criança em consideração”, afirma o pediatra Daniel Becker, especialista em bem-estar integral das famílias (RJ). “São tantas exigências por perfeição, restrições e proibições que a maternidade virou um fardo a ser carregado sozinha.” A fisioterapeuta Lívia Bentes, 34, consumiu muito conteúdo assim quando a filha Louise, 6, era menor: sentia-se mal e inadequada por não seguir esta ou aquela vertente. Com Murilo, 3, decidiu desencanar para levar a maternidade com mais leveza.

Elisama Santos acredita que essa geração está completamente desconectada da própria intuição, com medo de não seguir a cartilha da mãe perfeita. Por que os pais não padecem dessa angústia – ou na mesma proporção? “A paternidade não define o homem. Ele não cresce ouvindo que precisa dela para ter plenitude. As mulheres são treinadas desde pequenas a olhar para a maternidade como um cartão de visitas, uma prova de sua capacidade. Então a gente surta mesmo”, diz a psicanalista. Durante a pandemia de covid-19, 63% das mães tiveram sintomas depressivos, de acordo com um estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP). Nos seis primeiros meses de isolamento, com escolas fechadas e sem rede de apoio, a jornalista Camila Cardoso Farias, 29, sofreu com crises de ansiedade e quase teve um burnout.
 

"O homem não cresce ouvindo que precisa da paternidade para ser pleno"

 

Ela e o marido se dividiam entre o home office, as tarefas domésticas e os cuidados com o filho Bernardo, 3. Era Camila entrar em reunião que ele a chamava para brincar. Ela gritava e depois chorava se sentindo a pior mãe do mundo. “Temos de olhar para nós mesmas com a compaixão que olhamos para os nossos filhos. Quando falhamos, podemos ensinar sobre a humildade de pedir desculpas e recomeçar”, diz a pediatra Mariele Rios, do perfil @umamaepediatra, com mais de 250 mil seguidores. Filhos não precisam de mães e pais perfeitos. “Se a perfeição fosse alcançável, ela não seria saudável porque geraria um padrão que a criança passaria a vida percorrendo.” Então quer dizer que, além de impossível, ela sequer deveria ser um objetivo materno?

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334 Mae Suficientemente Boa (Foto: Luiza Veroneze sobre Getty Images)

(Foto: Luiza Veroneze sobre Getty Images)

Imperfeição positiva

Nos anos 1950, o pediatra e psicanalista britânico Donald Winnicott cunhou o termo “mãe suficientemente boa” (época em que não se discutia tanto sobre papéis de gênero). Ele descrevia o necessário processo no qual a mãe vai naturalmente deixando de ser hiper-responsiva às necessidades da criança à medida que ela cresce. Por exemplo, aguarda se ela se levanta sozinha de uma queda boba em vez de correr em sua direção. É o delicado equilíbrio entre oferecer atenção, promover a independência e ajudar o filho a lidar com a frustração. A mãe suficientemente boa seria apenas bem-intencionada, atenta, geralmente confiável, disposta a dar o melhor de si e investir na relação. Mas também alguém que falha com frequência e tenta se corrigir. De vez em quando, ela vai servir um lanche para o jantar, colocar um desenho no celular para tomar um café em silêncio, deixar a água do banho mais quente, cortar a unha rente, dar um grito raivoso...

Você não precisa acertar sempre. A criança não apenas vai sobreviver como, de acordo com Winnicott, desenvolverá resiliência e capacidade de adaptação. “As imperfeições da mãe suficientemente boa preparam os filhos para um mundo imperfeito”, escreveu o psicanalista. Afinal, a vida e as pessoas fora da bolha familiar não atenderão a todas as demandas desta criança – e futuro adulto. O pediatra Daniel Becker concorda: “Quando ela entra em contato com a vulnerabilidade e as falhas dos pais, inconscientemente entende que eles são humanos. Isso lhe permite ser humana também. Crianças que têm pais perfeitos enlouquecem”. Se não existe espaço para o erro, os pequenos tendem a ser mais ansiosos e exigentes consigo mesmos.

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Entregar o possível – e não o melhor – para os filhos soa como justificativa para negligência, agressões e preguiça? Não é nada disso: trata-se de educar com gentileza, sim, mas não criar expectativas irrealistas e admitir que somos falíveis. “O desejo pela perfeição mascara a nossa dificuldade de lidar com a frustração, os fracassos, as limitações. Queremos ser plenamente aceitos, o que é impossível”, diz a jornalista Daiana Garbin, autora de A vida perfeita não existe (Editora Sextante), e mãe de Lua, 1. Para escrever o livro, ela fez pesquisas e entrevistas com especialistas sobre o sentimento de inadequação na busca por uma felicidade idealizada. Daiana acredita que é preciso se conectar mais com a própria intuição, evitando comparações e regras universais. “Os manuais que você segue sobre como criar um filho são compatíveis com a sua cultura, a sua condição socioeconômica, a sua rede de apoio?”, questiona.

334 Mae Suficientemente Boa (Foto: Luiza Veroneze sobre Getty Images)

(Foto: Luiza Veroneze sobre Getty Images)

É permitido ter vontades

Desconsiderar o contexto ou olhar só o que é melhor para a criança, na opinião da psicanalista Elisama Santos, significa uma forma de violência contra a mãe. “Não é saudável engolir todas as suas necessidades pelo filho. Ele é um ser desejante, mas você também é”, afirma. Embora persista o mito de que a mãe deve ser uma figura abnegada, anular os demais aspectos da sua identidade pode gerar um modelo abusivo de afeto e dependência. Na tese de Winnicott, só serão mães felizes se forem pessoas felizes. Tempo para exercer o autocuidado, por exemplo, não é apenas uma necessidade fundamental como um direito. “A mãe suficientemente boa construiu uma noção clara de qual é o seu limite”, diz o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral. “Ela se dá o direito de ser apoiada por outras pessoas – e responsabiliza quem deve ser responsabilizado pelo compartilhamento do cuidado, como o pai da criança”, reforça. Isso se essa mãe não for uma dos milhões de mães-solo do país...

Em uma sociedade machista, a mulher conquistou espaço no mercado de trabalho, mas segue sobrecarregada por tarefas domésticas e cuidados que deveriam ser distribuídos de forma igualitária. De acordo com pesquisas divulgadas durante a pandemia, elas gastam em média 15 horas a mais por semana do que os homens nessas atividades; conseguem se dedicar ao trabalho remunerado 1/3 do tempo deles e são mais interrompidas; foram as principais responsáveis pelo ensino à distância das crianças; mais propensas a serem demitidas ou perderem o emprego. Ou seja, uma mãe suficientemente boa precisa de políticas públicas que implementem licença-paternidade ampla (e não de cinco ou 20 dias), creches de qualidade e com vagas suficientes, visitas de assistentes sociais e enfermeiras para ajudá-la, só para listar algumas necessidades.
 

"Uma mãe suficientemente boa precisa do apoio de políticas públicas"

 




Enquanto isso não acontece, essa mulher deve pedir ajuda para avós, vizinhas, amigas... “Você precisa de uma comunidade para descansar, e o seu filho, para conviver e estabelecer vínculos. Permita que outras pessoas atendam às demandas dele e, eventualmente, errem”, diz a pediatra Mariele. A fralda precisa ser trocada do seu jeito ou basta que ele esteja limpo? O que você consegue relevar e tolerar para ter algumas horas de sossego? Priorizar o seu bem-estar e a sua saúde mental não fazem de você uma “mãe egoísta”, assim como seu pequeno não estará “abandonado” com outros cuidadores. A mãe suficientemente boa enxerga a si mesma, calibra expectativas, escolhe suas batalhas, pede ajuda. “É como aquele aviso no avião: em caso de despressurização, você deve botar a máscara primeiro para depois ter condições de salvar o seu filho”, diz Daiana Garbin.

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