• Daniel Becker e Ricardo Chaves
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 Volta às aulas no “novo normal” (Foto: Getty Images)

 (Foto: Getty Images)

O direito de todos à educação é um imperativo moral de uma sociedade que produziu um padrão de desigualdade que não faz sentido".                                                                      Ricardo Henriques

Nossa sociedade foi profundamente afetada pela pandemia. A polarização e a violência nas relações interpessoais, que já chegavam a níveis espantosos em 2019, se intensificaram ainda mais e colocaram em questão fatos científicos e estratégias que teriam salvo milhares de vidas.

Isso é agravado pela incompetência e falta de visão de nossos governantes. Estamos doentes do coletivo, do pensar em prioridades do todo, do planejar uma agenda pública.

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Só um adoecimento social explica que nossas crianças, o bem considerado “mais precioso” pelos pais, e a quem a constituição confere “prioridade absoluta”, estejam tão negligenciadas numa crise sanitária, econômica e social como a que vivemos. E não só as crianças, mas aquelas que sempre acabam com o fardo mais pesado do seu cuidado: as mulheres.

Escolas são serviços essenciais. Sua reabertura é a questão mais complexa no mundo, hoje. E também a mais premente. É inaceitável que crianças estejam fora de um ambiente escolar por 7, 8 meses. É o caso da maioria esmagadora dos alunos em nosso país, que dependem da educação pública. Foram abandonados pelo estado e pela sociedade, aqueles que deveriam protegê-los.

As escolas são muito mais que lugares de aprendizagem formal. São territórios de interação, de amor, afeto, acolhimento, troca, brincadeiras. Ali, ela aprende sobre a vida no espaço público. Como disse o escritor Julian Fuks, é "um microcosmo onde relações vivas e complexas se constroem”. “É também a primeira experiência da criança como participante de um grupo de iguais”. A interação com os professores, figuras importantes de afeto e orientação, também faz muita falta.

Para muitas crianças a escola representa um elemento central da rede de proteção social e da garantia de direitos básicos, como a segurança alimentar e a detecção, prevenção e encaminhamento de casos de abuso e violência.

Mesmo as crianças que tiveram acesso a atividades educativas à distância demonstram sintomas de sofrimento psíquico e físico em função da vários fatores. O confinamento entre quatro paredes durante meses, a convivência com pais altamente sobrecarregados e estressados, a perda do ar livre e da natureza, do contato com avós, outros parentes e com os amigos, o excesso de telas, vêm causando adoecimento em proporções epidêmicas, percebidas por cuidadores e pediatras.

Vemos surgir sintomas físicos como dores abdominais e cefaleias, diarreia e constipação, urgência de urinar, ansiedade, crises de irritabilidade, solicitação constante, medos projetivos (monstros, bruxas), redução de apetite ou comer compulsivo com ganho de peso, insônia, distúrbios do sono, gagueiras e tiques. Crianças que já haviam alcançado certos marcos de desenvolvimento, como desfralde, autonomia para comer, regridem a estágios mais imaturos.

E como estarão as crianças mais pobres, aquelas da educação pública? Seus pais que têm que sair para trabalhar nos serviços essenciais? Ficam sem saneamento, sem alimentação adequada, sem cuidado e orientação, expostas à violência e acidentes, privadas de aprendizado, socialização, acolhimento e brincadeira, sem recursos que as socorram em caso de abuso e negligência?

Sem falar dos enormes prejuízos cognitivos e para o desenvolvimento neuro-psicomotor, da perda de janelas importantes para o aprendizado, da piora da nossa já trágica evasão escolar, do gravíssimo aprofundamento da desigualdade e da diminuição de oportunidades justamente para as crianças mais vulneráveis. E da devastação econômica que virá como consequência.

As questões ecoam no vazio. Em vez de debater a reabertura de um serviço absolutamente essencial como as escolas, a sociedade e seus governantes parecem mais preocupados com a liberação de bares, jogos de futebol com torcida, shopping centers e festas de casamento. E aí reside a contradição: com essas atitudes estamos perpetuando o contágio em níveis altos. Então, quando poderemos abrir as escolas? Em dois ou três anos? Ou, com essa promessa messiânica de “quando vier a vacina”? Não se pode depositar todas as esperanças e decisões numa vacina, especialmente para as crianças: elas serão as últimas a receberem.

Sabemos o quanto a pandemia poupou as crianças em relação à doença (COVID-19). Ainda bem - a tragédia teria sido ainda maior. Mas já é hora de despertarmos para o seu sofrimento físico, mental, emocional e social.

Uma das maneiras de ajudarmos nossos filhos é levando-os para o ar livre e a natureza. Esses são territórios essenciais para seu desenvolvimento, saúde e bem-estar, e também onde melhor exercem sua atividade mais essencial - o livre brincar. A brincadeira é a linguagem, a forma de ler e se expressar no mundo, de aprender a viver, de adquirir habilidades fundamentais.

Além disso, a principal forma de transmissão parece ser mesmo o aerossol, que funciona como a fumaça: ao ar livre ela se dissipa rapidamente. Portanto, atividades ao ar livre são também as mais seguras para todos. Basta seguir os protocolos de higiene e distanciamento já bem conhecidos, e do uso de máscaras para crianças maiores de 4/5 anos que consigam usar.

Mas apenas isso não resolve o problema, especialmente para as crianças da educação pública. Diante dessa questão, mais uma vez construímos polos opostos que não dialogam. Professores e alguns especialistas em infectologia ou epidemiologia e uma maioria da população, segundo pesquisas, rejeitam a volta às aulas. É compreensível: a ideia do agravamento da epidemia pela circulação maior de pessoas e do risco aumentado para quem trabalha na escola são fatos inegáveis.

Sabemos também que muitas escolas públicas não têm estrutura para receber alunos e funcionários nas condições exigidas pelos protocolos bem estabelecidos e já aplicados, com segurança, em muitos países. Por que, aliás, isso não foi feito ao longo de mais de 6 meses com escolas fechadas. Onde estão as obras, as melhorias?

Por outro lado, muitos pediatras, cientistas de diversas áreas e especialistas em políticas públicas estão fazendo um apelo para que a sociedade se responsabilize pelas crianças. É inaceitável que continuemos a negligenciá-las. Recentemente os pediatras se manifestaram coletivamente através de um documento divulgado pela SOPERJ (Sociedade de Pediatria do RJ - aqui).

A maioria dos estudos científicos concorda em afirmar que crianças se infectam com menos frequência, que suas infecções são bem mais brandas ou assintomáticas, que os casos graves são muito raros. Crianças menores de 5 anos transmitem pouco a doença, e as maiores de 10 anos transmitem como adultos - mas podem usar máscara e respeitar protocolos com mais facilidade.

Estudos mostram também que a maior parte das transmissões intra-familiares não ocorre a partir da criança. E que a reabertura das escolas não causou (com poucas exceções, descuidadas) piora na transmissão do vírus e nas curvas de óbitos. Ao contrário do Influenza (gripe), em que crianças têm importante papel no contágio. 

Sabemos também que, desde o início do século, aulas ao ar livre são recursos eficazes para a redução de riscos em situações como a que vivemos agora.

O debate é urgente e inadiável. Estamos no final do ano, e se já não é possível falar em “recuperar o ano letivo”, ainda podemos oferecer benefícios muito significativos às crianças que mais precisam de atenção, mitigando os riscos para professores e funcionários.

As crianças precisam essencialmente de: acolhimento e afeto, interação com seus pares, oportunidades de brincar e socializar; atendimento às suas necessidades nutricionais, higiênicas e físicas (movimento, descoberta); e estimulação sensorial, cognitiva e cultural.

A pandemia proporcionou uma série de vivências e aprendizados diferentes da instrução formal das escolas, mas que são significativos. E que podem ser aproveitados no reencontro entre alunos e professores. Temas como a colaboração inédita entre cientistas via internet; a relação entre saúde e economia; as questões ambientais e relativas à natureza (tão importantes no momento do país e no futuro dessas crianças); a desigualdade como raiz de nossos piores problemas; a importância dos trabalhadores em serviços essenciais; a centralidade da ciência e do estado em nossas vidas, o SUS, a solidariedade.

As formas de retorno que em nossa opinião seriam ao mesmo tempo as mais benéficas para as crianças e que mitigariam os riscos para educadores seriam as atividades ao ar livre, sob toldos, ou em movimento - rodas de conversa para acolhimento emocional e discussão das experiências vividas, movimentação física, brincadeiras e também atividades didáticas. Há uma grande oportunidade no aproveitamento das áreas abertas para exploração de elementos naturais que podem oferecer aprendizados em biologia, física, matemática, história, geografia, e também noções transversais de saúde, cidadania, urbanismo e muito mais.

Junto com isso, devem ser implantadas as medidas que já se demonstraram eficazes em outros países, e adotadas pelas escolas privadas - redução das turmas, grupos menores e fixos, máscaras para quem tem mais de 4/5 anos, distanciamento para os maiores e medidas de higiene constante. Além de EPI e distanciamento para professores e funcionários, e vigilância e testagem de possíveis casos de síndrome gripal e de quem teve contato com essas pessoas.

Dessa forma atenderíamos as necessidades das crianças e reduziríamos os riscos para professores e famílias - que devem estar envolvidos nas discussões desde o início. Educadores e funcionários de grupos de risco não devem participar da retomada nesse momento. Famílias com pessoas de risco elevado na residência devem ser objeto de consideração.

Muitas escolas públicas não possuem áreas abertas ou verdes, como quadras e hortas. Por isso é importante procurar a articulação com a prefeitura local e a sociedade civil, para aproveitamento de praças, parques, áreas arborizadas, quadras e estádios desportivos, e também entidades privadas como clubes e igrejas. Vamos precisar também de pessoal para garantir segurança, alimentação e hidratação e formas de oferecer sombra nos dias de calor.

Sabemos também que se as condições de transmissão estiverem fora de controle, não há segurança para a reabertura. Mas esse não parece ser o caso da maioria dos estados brasileiros nesse momento. Com uma reabertura gradual e boas políticas de vigilância epidemiológica, poderemos retomar as atividades escolares da forma mais segura possível.

Não é simples, mas com um trabalho coordenado das autoridades da saúde, recreação, parques e jardins, urbanismo e educação, e a participação de professores e famílias, podemos chegar a um retorno seguro. Afinal, o cuidado e a proteção das crianças é uma responsabilidade que deve ser compartilhada por todos nós. 


O pediatra Daniel Becker participou do Painel Primeira Infância e o Cidadão do Amanhã (Foto: Sylvia Gosztonyi/ Editora Globo)

O pediatra Daniel Becker participou do Painel Primeira Infância e o Cidadão do Amanhã (Foto: Sylvia Gosztonyi/ Editora Globo)

Daniel Becker é pediatra do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do site Pediatria Integral

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