• Deh Bastos
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Deh Bastos e família (Foto: Instagram)

Deh Bastos e família (Foto: Instagram)

Eu ainda me surpreendo quando me identifico com situações vividas por pessoas negras que nunca vi na vida. Em conversas nas quais alguém começa a contar algo que viveu e os estereótipos a que já foi reduzido, sempre rola uma troca de olhares do tipo: “uau, você também passou isso?”

Se você procurar no dicionário pela palavra 'estereótipo', uma das definições que vai encontrar é a seguinte: “Imagem, ideia que categoriza alguém ou algo com base apenas em falsas generalizações, expectativas e hábitos de julgamento”. As pessoas negras no Brasil sabem muito bem o que é viver na pele alguns rótulos: a mulher negra raivosa, o homem negro que não demostra afeto, a única pessoa negra em um recinto, o menino negro que é violento, a menina negra que é preterida e que não é considerada bela, a pessoa negra da qual se espera uma história de superação, o menino preto reduzido a ser bom apenas no futebol, a mulher preta hipersexualizada, a criança preta que é considerada menos inteligente, a objetificação sexual dos homens negros... Enfim, são muitos estereótipos.

Alguns desses clichês são reproduzidos até pelas próprias famílias e podem ser cruéis com as nossas crianças. Sempre chamo a atenção de pais, mães e responsáveis para a não reprodução do que, para mim, é um dos piores ensinamentos para uma criança preta: o tal do “você precisa ser duas vezes melhor”. Apesar de saber o quanto isso é impiedoso e prejudicial na construção da autoestima das crianças negras, entendo completamente o motivo pelo qual essa fala é constantemente reproduzida pelas famílias.

O racismo é um sistema político de opressão. Isso significa que ele nos invisibiliza, nos desumaniza e faz com que as oportunidades não cheguem de forma igual para todos. É justamente por saber disso que, mesmo quando não há um letramento racial, muitas famílias reproduzem essa fala por gerações. Eu realmente acredito que isso era feito com amor, na tentativa de nos preparar para as injustiças dessa sociedade racista. Não é sobre cobrar o que foi feito da nossa infância. Nossas mães e pais fizeram o melhor que podiam com o que tinham. Muitos trabalhavam apenas para que pudéssemos sobreviver e precisamos ser gratos a eles, além de reverenciar quem lutou na vida para que pudéssemos existir nesse agora, que nos permite ter informação para fazer diferente com nossas crianças.


Esse doloroso discurso é tão comum que está eternizado em músicas, filmes e séries. A música A vida é um desafio, dos lendários Racionais MC’s, já começa com "Desde cedo, a mãe da gente fala assim: 'filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor. 'Aí passado alguns anos eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... Por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como? Ou melhora ou ser o melhor ou o pior de uma vez. E sempre foi assim. Você vai escolher o que tiver mais perto de você, o que tiver dentro da sua realidade. Você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida rapaz".

Na série Scandal, protagonizada pela atriz Kerry Washigton, a personagem Olivia Pope é conhecida por ser perfeccionista e implacável. Em uma das cenas, Olivia ouve de seu pai, Rowan Pope, a frase: “Você deve ser duas vezes melhor que eles para conseguir metade do que eles têm".

Fico pensando em como os adultos pretos ainda se cobram um perfeccionismo exaustivo, em como nos preparamos um milhão de vezes mais que pessoas não negras, na tentativa de diminuir cada vez mais os riscos de errar. Penso no peso que é colocar nas costas de uma criança dizer que ela precisa sozinha, ser maior e melhor que esse sistema estrutural extremamente bem arquitetado e executado para ser desigual.

Eu sou do time das esperançosas. Você também é, eu sei! Bora olhar com amor nos olhinhos brilhantes das nossas crianças pretas e dizer: "Você é muito mais que o suficiente do jeitinho que você é. Juntos estamos trabalhando para mudar o mundo para você".

Deh Bastos, Criando Crianças Pretas (Foto: Arquivo pessoal)

Deh Bastos, Criando Crianças Pretas (Foto: Arquivo pessoal)

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