Nossa relação com o mundo se estabelece, em boa parte das situações, pela mediação da cultura material. Desde tempos remotos, buscamos nos fragmentos dos objetos, não apenas entender seus usos, mas inferir as relações simbólicas e afetivas encarnadas nesses objetivos, perceptíveis pelas pistas impressas nas materialidades, no design, na cor, nos locais de uso, na ocasião, etc.
Da Arqueologia, passando pela Antropologia e pela Semiótica, a cultura material transborda a funcionalidade e nos coloca em conexão aos nossos valores e modos de vida mais significativos. Conectamo-nos com as coisas a partir de suas qualidades perceptíveis pelos nossos sentidos e, com isso, colocamo-nos em comunhão.
As qualidades das coisas estimulam nossos sentidos, afetando nossos sentimentos e emoções. Aliás, este é o princípio explicativo da primeiridade em Peirce, semioticista americano de finais do século 19, que estabeleceu as bases da semiótica, concebida como uma lógica, um modo de pensar.
Muito além das críticas materialistas rasas, a cultura material promove relações não apenas entre nós e as coisas, mas medeiam vínculos entre nós, humanos, como acontece com os presentes (no ato de dar e receber), os souvenirs entregues após uma viagem, os animais, o mundo das plantas e até mesmo com o mundo espiritual e imaginativo, afinal, infinitas mediações materiais foram e são criadas neste sentido.
Assim, podemos compreender que as nossas relações com as coisas, os objetos, os produtos, as mercadorias, os bens – cada termo com suas camadas de significado, mas guardando a materialidade como signo comum – acontecem em três eixos fundamentais: estético-afetiva; funcional-utilitária e cultural-simbólica. Cada uma delas com natureza, territórios sígnicos e mediações distintas, mas que, ainda assim, podem dialogar em processos de articulação e crescimento, ou seja, na produção, no consumo e na circulação de novos significados em semiose ilimitada.
Estético-afetiva
Estabelecemos relações estético-afetivas com obras de arte, livros, itens de decoração, móveis, louças, souvenires, roupas, joias, acessórios e tantos outros objetos que fazem parte do nosso cotidiano e com os quais construímos familiaridade.
Em linhas gerais, são materialidades (e imaterialidades também) que nos agradam, provocam bem-estar e deleite, confortam, promovem fruição e transcendência pelo prazer que são capazes de gerar, quer na contemplação, quer no uso e no consumo. São estéticos porque são admiráveis. São afetivos porque nos fazem bem e transmitem ao coletivo esta condição emocional.
Funcional-utilitária
São exemplos clássicos os instrumentos de natureza variada, de medição, de navegação e cirúrgicos. As ferramentas usadas em variados ofícios, as armas de todos os tipos, as peças, os componentes e os utensílios domésticos, absolutamente cotidianos e que nos acompanham por toda a vida. Os aparatos médicos e hospitalares e as próteses também estão aqui incluídos. O que há em comum entre eles é a objetividade da função.
Foram pensados e aperfeiçoados a partir de demandas do homem e suas relações com a espécie e a natureza. Atendem a necessidades relacionadas à alimentação, ao manejo, ao bem-estar, à cura, à vida e morte. Ainda que os usos possam ser desvirtuados, a funcionalidade é dada pelo material de que é feito e pelo design que o constituí.
As tecnologias de produção, inicialmente artesanais, agora são industriais e informatizadas, garantindo, como potencialidade, maior racionalidade e eficiência quanto aos usos e consumos desses objetos.
Cultural-simbólica
As relações cultural-simbólicas são aquelas construídas arbitrariamente e que se banham da cultura para se constituírem. Objetos litúrgicos, de devoção e de cultos, como taças, velas, ânforas, estolas, mantos, coroas, etc., fazem parte deste eixo.
Os ex-votos, relíquias (inclusive partes de corpos antes humanos) e assemelhados que só existem como consequência dos significados simbólicos, portanto, arbitrários, que atribuímos a eles, como no caso do Santo Sudário ou de dezenas de fragmentos da cruz de Cristo espalhados pelo mundo, que movimentam milhões de pessoas e muito dinheiro.
Mas, há também os objetos de marca, como os promocionais, por exemplo, que atendem a esta dimensão simbólica (como toda a marca) e até mesmo alguns produtos podem ser simbólicos, ainda que na origem carreguem a natureza da funcionalidade.
Organizar nossas relações com as coisas a partir dos três eixos apresentados é uma forma de sistematizar o entendimento a partir de critérios que expressam significados, mas, evidentemente, há objetos que transitam de um eixo ao outro ao longo do tempo e quando pensamos na variável temporal, praticamente todos os objetos carregam a potencialidade de se tornarem simbólicos, ou seja, representantes de uma época, de um estilo de vida, de um determinado padrão de gosto.
Há objetos que comungam de dois ou mais eixos, podem ser estéticos e funcionais, como no caso de inúmeras marcas de produtos para o lar, posicionados exatamente nesta perspectiva – são úteis (funcionais) e lindos (estéticos).
Também podem ser pensados como utilitários e assumem camadas estéticas e simbólicas, como o espremedor de frutas dourado criado pelo designer Philippe Starck, que vinha com o seguinte aviso na etiqueta “Não utilizar para espremer frutas. Danifica o material”. O bom humor do designer vinha acompanhado do significado simbólico e estético desejado por ele e transmitido aos clientes. Não era um espremedor de frutas, mas, sim, um objeto de enfeite e deleite.