Sentidos do habitar

Por Clotilde Perez

Colunista | Semioticista, professora da Universidade de São Paulo (USP) e fundadora da Casa Semio.x

As misturas, as diferenças postas em diálogo e as ambiguidades parecem ser marcas muito expressivas da nossa identidade nacional e estão presentes em manifestações artísticas, como cinema, literatura, música, dança, artes plásticas, street art, arte digital, performances, design e tantas outras, além de comportamentos cotidianos e valores sociais.

Este aspecto, com alma contraditória, segue sendo muito presente, no entanto, nesses últimos meses, que compreendemos como pós-pandêmicos, chama a atenção à recorrência de objetos, bens e mercadorias sem vida, mas são colocados diante de nós para contemplação, aquisição e fruição – verdadeiramente lindos.

Neste projeto do escritório Mestisso Arquitetura & Interiores, a bancada do lavabo recebeu vaso com arranjos secos — Foto: Monica Assan / Divulgação
Neste projeto do escritório Mestisso Arquitetura & Interiores, a bancada do lavabo recebeu vaso com arranjos secos — Foto: Monica Assan / Divulgação

As folhagens e flores secas, troncos queimados e desfeitos, galhos contorcidos, dominam esta manifestação, principalmente no design de interiores, na decoração privada e pública, e também na moda, na estamparia, no vitrinismo... Longe de surgirem com aspectos mórbidos ou de finitude explícita, despontam com beleza inquestionável.

Borboletário de papel com galhos secos é uma das aplicações do conceito de morte embelezada — Foto: Cristiane Senna / Editora Globo
Borboletário de papel com galhos secos é uma das aplicações do conceito de morte embelezada — Foto: Cristiane Senna / Editora Globo

Outros exemplos são objetos que trazem rupturas à realidade, como no caso do globo terrestre, onde toda a porção aquática dos mares representada pela cor azul é substituída pela preta, instaurando a tensão própria entre água-azul-vida e o contexto tétrico da morte e do luto, relacionado à cor preta, no ocidente. Mas, o objeto em si, é lindo!

As camisetas da linha I´m fine são outra expressão de total tensionamento. São lindas, mas, “nada fine” quando você levou um tiro, uma facada ou está sendo engolido por um tubarão. É o quase morto, mas está tudo bem.

As estampas da camiseta I'm Fine trazem situações trágicas, como esta de tiro — Foto: Divulgação
As estampas da camiseta I'm Fine trazem situações trágicas, como esta de tiro — Foto: Divulgação

Outro tensionamento se apresenta na relação forma e conteúdo. Instalações luxuriantes, energéticas e intensas revelam conteúdos de puro sofrimento. É o caso da instalação I love neon, da Galeria Choque Cultural na SP-Arte de 2022, onde textos e figuras relacionadas ao universo médico e farmacêutico se oferecem com imensa beleza, mas seus conteúdos são pesados: opióides, rivotril, dopamina, prozac, agulhas e seringas.

Parte da instalação I Love Neon durante a SP-Arte 2022, na Galeria Choque Cultural — Foto: Galeria Choque Cultural / Divulgação
Parte da instalação I Love Neon durante a SP-Arte 2022, na Galeria Choque Cultural — Foto: Galeria Choque Cultural / Divulgação

Essas expressões, totalmente distantes de um culto fúnebre ou sombrio, nos mostram o quanto o sofrimento, a dor e a morte estão presentes em nosso cotidiano – reflexo da pandemia –, e diante da força da realidade (inevitabilidade da morte), estetizamos tudo, buscando um caminho de possibilidades. Não naturaliza simplesmente, mas embeleza, torna prazeroso, satisfaz os sentidos.

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