• Por Ananda Apple
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Ilustração Nos jardins de Ananda Apple, agosto de 2018 (Foto: Ilustração Anália Moraes / Editora Globo)

(Ilustração: Anália Moraes / Editora Globo)

Frases prontas e clichezentas provocam tédio e indiferença. Tem aquelas que a gente ouve desde que nasce, tipo: ‘Mentir é errado’, ‘Não corra, que você cai’, ‘É preciso cuidar da natureza...’. De tanto ouvir, ou aquilo entranha sem questionamento ou então nos anestesia e deixa de fazer diferença. Nesse balaio coloco o mandamento de respeitar todos os seres vivos. Mas na nossa cabeça ‘todos’ é uma entidade amorfa. Se você mora em uma cidade grande, sabe que ‘ser vivo’ é, quando muito, uma pessoa ou um cachorro.

As árvores costumam ficar esquecidas. A não ser que as raízes levantem as calçadas, que os galhos ameacem a fiação (e não o contrário!) ou que elas tombem no meio da rua. Ou, mais raramente, que explodam em uma floração espetacular, como acontece com os ipês amarelos de agora até setembro. Aí muita gente se dá conta de que aquilo na rua – quem diria! – era o tal do ipê, árvore símbolo do Brasil.

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Eu tenho o hábito de andar sempre olhando para as árvores, o que explica minhas muitas topadas pelo caminho. Olho o que está errado, o que está bonito. Mas dia desses, ao fazer uma reportagem sobre o trânsito de São Paulo, meu olhar foi capturado de um jeito completamente diferente: um enorme guapuruvu da Mata Atlântica se erguia de um canteiro entre duas pistas movimentadas da Marginal Tietê. Aquele tronco largo, reto como um poste, que só no alto se bifurcava em galhos, me hipnotizou. Não porque o guapuruvu cresce rápido e é bom para reflorestar. Não porque os indígenas lhe deram esse nome, que significa “canoa que sai da terra”, já que seu tronco é ideal para confeccionar esse objeto. Não porque sua florada amarela ilumina o final do mês de agosto.

O tronco me pegou porque vi surpreendentes dobras quase humanas nas bifurcações, como se fossem as dobrinhas de um bebê ou a sanfona do tempo nos braços de uma velhinha. Pela cor acinzentada, poderiam até ser as dobras de um elefante ou de um rinoceronte. Só faltavam respirar. Fiquei olhando longamente aquele ser vivo e senti uma emoção profunda. Talvez a mesma de um mergulhador quando vê passar a poucos metros uma interminável baleia, que poderia acabar com a calmaria com uma só rabada, mas, em vez disso, desliza colossal e silenciosa sem encostar nele. Um ser vivo que respira e deixa viver. Como o guapuruvu. Precisei enxergar as dobras daquela árvore para me irmanar a ela, para entender que somos só mais dois entre os incontáveis seres vivos que dividem o mesmo lugar.

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Ananda Apple (@anandaappleoficial) é repórter daTV Globo especializada em natureza e apresentadora do Quadro Verde do Bom Dia São Paulo (Foto: Lufe Gomes/Editora Globo)

(Foto: Lufe Gomes/Editora Globo)

Ananda Apple (@anandaappleoficial) é repórter da TV Globo especializada em natureza e apresentadora do Quadro Verde do Bom Dia São Paulo.