• Por Yara Guerra com Alex Alcantara
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Enedina ficou conhecida por usar macacão e portar sempre, à cintura, uma arma, que usava para dar tiros para o alto sempre que julgava se fazer respeitada (Foto: Reprodução / Youtube)

Enedina ficou conhecida por usar macacão e portar sempre, à cintura, uma arma, que usava para dar tiros para o alto sempre que julgava se fazer respeitada (Foto: Reprodução / Youtube)

Uma viagem mental no tempo ao ano de 1940 nos leva a refletir que, se hoje minorias como pretos e mulheres ainda sofrem com pensamentos retrógrados, naquela época então o preconceito era muito maior. O Brasil havia abolido a escravidão há apenas 52 anos e o voto feminino só havia sido permitido 8 anos antes. Nesse cenário, é praticamente impossível pensar em uma emancipação, principalmente de quem participa de dois grupos minoritários. Mas Enedina Marques (1913-1981) contradisse as estatísticas e se tornou a primeira engenheira preta do país.

Filha de um casal preto, proveniente do êxodo rural após a abolição da escravatura (1888), Enedina cresceu na casa do Major Domingos Nascimento Sobrinho, em Curitiba, onde a sua mãe trabalhava. Ele pagou os estudos em um colégio particular com a intenção de que fizesse companhia a sua filha. Ela foi alfabetizada aos 12 e, um ano depois, ingressou no Instituto de Educação do Paraná, sempre trabalhando como empregada doméstica e babá em casas da elite curitibana para custear seus estudos.

Enedina trabalhava como empregada doméstica e babá para custear seus estudos (Foto: Divulgação)

Enedina trabalhava como empregada doméstica e babá para custear seus estudos (Foto: Divulgação)

Quando deixou a escola, em 1931, Enedina passou a dar aulas e sonhar com a universidade de engenharia. Precisou enfrentar todos os tipos de obstáculos morais e preconceitos para ingressar, em 1940, em uma turma formada somente por homens brancos. Naquela sociedade pós-abolição, não foram instituídas políticas públicas e nem ofertadas oportunidades educacionais e profissionais com expectativas de ascensão social à população negra, escravizada durante séculos. Além disso, Enedina vivia em uma região formada por descendentes de europeus.

Por ser mulher, também não havia muitos horizontes: era destinado ao sexo feminino o papel de dona de casa. Já no mercado de trabalho, as opções se limitavam ao cargo de professora ou empregada de fábrica, sempre com salários menores do que o dos homens. Mas ela persistiu e, aos 32 anos, formou-se em Engenharia Civil na UFPR, tornando-se a primeira mulher a obter um curso superior no Paraná e a primeira engenheira preta no Brasil.

Assim que se formou, Enedina passou a trabalhar como auxiliar de engenharia na Secretaria de Estado de Viação e Obras Públicas e, após ser descoberta pelo então governador Moisés Lupion, foi realocada para o Departamento Estadual de Águas e Energia Elétrica do Paraná.

Como engenheira, participou de diversas obras importantes no estado, como a Usina Capivari-Cachoeira (atual Usina Governador Pedro Viriato Parigot de Souza, maior central hidrelétrica subterrânea do sul do país) e a construção do Colégio Estadual do Paraná. Ela ficou conhecida por usar macacão e portar sempre, à cintura, uma arma, que usava para dar tiros para o alto sempre que julgava se fazer respeitada.

Depois de estabelecer a sua carreira, Enedina se dedicou a viajar o mundo entre os anos de 1950 e 1960. Nesse mesmo período, em 1958, o major Domingos Nascimento faleceu, deixando-a como uma das beneficiárias no seu testamento. Em vida, ela conquistou respeito liderando centenas de operários, técnicos e engenheiros. Pela comemoração aos 500 anos do Brasil, foi construído em Curitiba o Memorial à Mulher, que gravou e imortalizou 54 personalidades femininas – dentre elas, Enedina, a “pioneira da engenharia”.

A casa em que Enedina morava com a sua mãe hoje abriga o Instituto Histórico, Iphan (Foto: Iphan / Divulgação)

A casa em que Enedina morava com a sua mãe hoje abriga o Instituto Histórico, Iphan (Foto: Iphan / Divulgação)

Também em sua homenagem, foi fundado o Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques, que se empenha em combater a invisibilidade racial em diversos setores, como o ambiente escolar e o mercado de trabalho.

Enedina não se casou e não teve filhos. Foi encontrada morta aos 68 anos no Edifício Lido, no centro de Curitiba, onde morava. Por não ter família imediata, seu corpo demorou a ser encontrado. Seu túmulo é um dos principais pontos da visita guiada pela pesquisadora Clarissa Grassi, no cemitério municipal da capital paranaense.

Mesmo anos após a sua morte, Enedina permanece sendo admirada. Em 1988, uma importante rua no bairro Cajuru em Curitiba recebeu o seu nome: Rua Engenheira Enedina Alves Marques. Em 2006, foi fundado o Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques, em Maringá. A casa do major da polícia e delegado Domingos Nascimento, onde ela viveu com a sua mãe durante sua infância, foi desmontada e transferida para o Juvevê e hoje abriga o Instituto Histórico, Iphan.

Neste ano de 2020, foi lançado um documentário, batizado de "Além de Tudo, Ela", com direção de Pâmela Regina Kath, Mickaelle Lima Souza, Lívia Zanuni e Pedro Vigeta Lopes. O cinebio documental retrata a trajetória de Enedina por meio de documentos, imagens e entrevistas com uma sobrinha, uma afilhada e um pesquisador. O filme foi exibido na programação da edição 2020 do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Abaixo, você pode conferir o trailer: