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Buik trabalhou na quitanda do pai até iniciar sua carreira de entregas — Foto: Editoria de Arte/Renata Amoedo
Buik trabalhou na quitanda do pai até iniciar sua carreira de entregas — Foto: Editoria de Arte/Renata Amoedo

Confira a história desta semana, no depoimento de Buik Marques:

"Minha certidão de nascimento diz que meu nome é José Luiz Almeida Marques. Mas se você perguntar às pessoas que me conhecem, esse aí é um ilustre desconhecido. Para quase todo mundo, eu sou o Buik (assim mesmo, sem o C), nascido na Tijuca, um cara que conseguiu superar aquilo que a vida tinha reservado para ele.

Meu apelido vem da infância, lá pelos 12 anos, quando eu jogava bola na rua com meus amigos. Perto da quadra, numa ladeira, ficava parado o Buick do gerente da tinturaria. Eu era desengonçado, vivia batendo nas coisas, me machucava. Os moleques diziam que eu jogava como um carro com o freio de mão solto, desgovernado.

Confesso que achava bom: nessa época os apelidos eram do tipo “Capitão Sujeira”. E eu já tinha motivo suficiente para ter vergonha de ser quem eu era. Meus pais eram portugueses do Norte, que imigraram sem muita perspectiva nem instrução. Aqui, montaram uma quitanda, com nossa casa anexa nos fundos, onde eu vivia com duas irmãs mais novas. Eu trabalhava lá desde menino.

Viver perto de comida atrai muitos bichos, e a gente convivia com muitos ratos e baratas. Um vizinho chamava minha irmã de Menina dos Ratão.

Passei grande parte da infância ajudando meu pai na quitanda. Até que os supermercados começaram a tomar tudo e matar o comércio de bairro. Então ele precisou se reinventar: arrumou uma kombi e passou a fazer entregas nas favelas dos entornos. A gente comprava grandes sacos de batata, cebola, dividia em pacotinhos menores, vendia com ovos, Pepsi, Crush, Grapette.

Ele era criativo, mas tinha outro lado mais sombrio. Bebia muito, para tentar aplacar a depressão. Uma vez me deu uma porrada e eu revidei, aquilo me fez muito mal. Muitos anos mais tarde, já fazendo análise, compreendi que ele também era uma vítima. Ser imigrante é algo difícil, sua história é apagada, com a identidade junto, você vira o português da quitanda, o chinês da Saara. Tinha festa na vizinhança e ninguém chamava ele.

Quando fiz 15 anos, concluí que trabalhar na quitanda não me levaria a nenhum lugar na vida. Foi quando meus amigos me contaram de uma vaga para entregar jornal de bicicleta no GLOBO. Era um modelo novo no país, inspirado nos entregadores adolescentes dos Estados Unidos. O projeto começou pela Urca e Grajaú e naquele momento chegava à Tijuca. Era a minha chance de me libertar.

Pedi autorização para o meu pai para começar, ele negou. Então passei a trabalhar escondido, acobertado pela minha mãe. Eu levantava de madrugada, saía de fininho para não acordar ninguém e pegava uma bicicleta que arrumei, sem freio nem para-lama.

Com uns três meses de trabalho, ele descobriu. Veio falar: “Você pensa que sou otário? Sei que você sai de madrugada na surdina”. A condição para continuar foi manter meu trabalho com ele. Ainda tinha que ir para a escola, minha vida era uma pressão absurda.

Eu tinha muitas dificuldades para estudar. Não enxergava direito o quadro negro, tinha problemas de visão. Quando contava em casa, diziam que médico era coisa de rico. Também não escrevia direito, trocava letras, que só depois descobri ser consequência da dislexia. Acabei sendo reprovado por isso. Certa vez uma professora pegou uma redação minha e leu para a turma inteira, que ria. Achava que era burro, tinha muita vergonha.

Mas o trabalho como entregador me abriu portas. Fiquei três anos entregando jornal de porta em porta, depois fui subindo: virei auxiliar, fiscal e por fim supervisor. Mudei para um colégio particular, com a ajuda financeira do jornal, fui me virando. Eu tinha meus recursos: usava a memória visual para “fotografar” as palavras e lembrar das frases.

Como era a gente que cobrava a assinatura, uma vez por semana, muitas vezes o pagamento vinha com gorjeta, que chamávamos de “gruja”. Juntava as grujas, as moedas da quitanda, colocava tudo numa caderneta de poupança. Finalmente, aos 19 anos, comprei um Chevette preto, meu passaporte para a independência.

Trabalhar com jornal era uma Disneylândia, tinha movimentação 24 horas por dia. Tudo podia mudar de uma hora para a outra. Era acontecer um desastre como o do Bateau Mouche (naufrágio ocorrido na Baía de Guanabara em 1988) para ter que rodar uma nova edição. Ler as reportagens também ajudava na minha dislexia, eu devorava o caderno de Esportes.

Até minha esposa foi esse trabalho que me deu. Conheci Ednéia numa festa para comemorar 10 mil novos assinantes, em uma churrascaria na Tijuca. No final, acabei dando uma carona para ela, que trabalhava no departamento de assinaturas.

Eu era tão acanhado de ser quem eu era que nunca pensei que iria casar, achei que a solução para mim seria virar padre. Acabamos de fazer 39 anos de casados, temos dois filhos, uma família linda. Ela às vezes não entende esse meu amor pelo jornal, mas respondo: “Não tem gente que chora pelo seu time de futebol? Eu vibro pelo GLOBO. Eu era alguém sem expectativa nenhuma, foi ele que me formou como pessoa”. Queria deixar essa declaração aqui.

Nunca deixei de entregar um jornal, nem com a pior das tempestades, nem que fosse 3 horas da tarde. Acabei virando empresário de distribuição, cheguei a ter 600 funcionários, hoje menos. Daqui a dez meses eu faço 50 anos nesse trabalho.

Tenho orgulho de ajudar as pessoas como um dia estenderam a mão para mim. Meus entregadores me procuram quando um tiroteio na favela fura a caixa d'água, quando têm uma filha com câncer. Sempre que alguém me pergunta se conheço algum jornalista importante, digo: 'Meu trabalho no GLOBO é fumaça de óleo diesel, caminhão e gente humilde na madrugada entregando o jornal'".

* em depoimento ao editor assistente Gustavo Leitão

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