A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/22, que prevê o fim da propriedade exclusiva da União sobre terrenos de marinha, é criticada por ambientalistas que acusavam a iniciativa de "facilitar a privatização" dos espaços litorâneos. A matéria foi tema de uma audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado na última quinta-feira e recebeu parecer favorável do relator, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
A PEC revoga o inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal, que aponta que os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens da União. A proposta do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (PA) planeja incluir na Constituição a transferência dessas propriedades para estados, municípios e iniciativa privada.
A definição das áreas de marinha é hoje prevista pelo decreto-lei nº 9.760, de 1946, que criou a Linha do Preamar Média (LPM), tida como uma delimitação do fim da área marítima. Como parâmetro pra definir até onde a água pode chegar, a regra usa como referência as marés máximas do ano de 1831. A partir daí, é contabilizada uma área de 33 metros do mar em direção ao continente, chamada de terrenos de marinha. Os locais não têm relação com a Marinha do Brasil.
Os imóveis construídos nesses terrenos têm escritura, mas os moradores são obrigados a pagar anualmente à União uma taxa de aforamento sobre o valor do terreno. No regime de aforamento, a propriedade do imóvel é compartilhada entre a União e um particular (cidadão ou empresa).
Por que a privatização de praias é proibida?
De acordo com Flávio Ahmed, presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-RJ, a existência dos terrenos de marinha impede o fechamento de áreas costeiras para entes privados. Como essas faixas pertencem exclusivamente à União, não é possível que proprietários fechem o local e transformem o espaço em praias privativas.
![Entenda o que são terrenos de marinha — Foto: Editoria de Arte](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/wkhsc9hCL39znlg_UClP5cwp63I=/0x0:648x575/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/L/v/oSOt59SHA3uLfWA7I3Mw/terrenos-marinha-site.jpg)
Ahmed ainda ressalta o caráter inerentemente coletivo e irrevogável das praias, descritas como patrimônio nacional da União nos incisos IV, ameaçado pela PEC, e VII do artigo 20 da Constituição Federal de 1988.
— Esse texto dá um significado muito maior para um aspecto comum a todas essas áreas: as praias passam a ser do povo brasileiro. Você não pode simplesmente vedar o acesso às praias por elas serem um bem público. Qualquer cenário que foge disso, ao meu ver, beira a inconstitucionalidade — afirma ele.
Por outro lado, o advogado David Nigri, especialista em Direito Administrativo, destaca que a PEC 3/22 seria somente uma prerrogativa para a extinção da taxa de aforamento e funcionaria como um facilitador para a transferência de um imóvel adquirido nessa região para terceiros, não havendo qualquer relação com a possível restrição ao acesso de partes da área costeira.
'Caos administrativo'
Durante a audiência pública promovida pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na tarde da última segunda-feira, especialistas alertaram para outros riscos patrimoniais e ambientais da proposta. Segundo Carolina Stuchi, representante da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União, a aprovação da PEC causaria “um caos administrativo”, uma vez que a estimativa é que existam cerca de 3 milhões de imóveis não registrados ocupando essa faixa.
— A PEC favorece a ocupação desordenada, ameaçando os ecossistemas, tornando esses terrenos mais vulneráveis a eventos climáticos extremos. A proposta ainda permite a privatização e cercamento das praias, trazendo impacto no turismo e na indústria de pesca — acrescentou Carolina.
Em seu parecer, Flávio Bolsonaro (PL-RJ) apontou que a União até hoje não demarcou a totalidade dos terrenos de marinha e afirmou, ainda, que muitas casas são registradas em cartório mas foram objeto de demarcação pela União, “surpreendendo os proprietários”.
— Não nos parece justo que o cidadão diligente, de boa-fé, que adquiriu imóvel devidamente registrado e, por vezes, localizado a algumas ruas de distância do mar, perca sua propriedade após vários anos em razão de um processo lento de demarcação. O fato é que o instituto terreno de marinha, da forma que atualmente é disciplinado pelo nosso ordenamento, causa inúmeras inseguranças jurídicas quanto à propriedade de edificações —defendeu o senador.
*Estagiária sob supervisão de Alfredo Mergulhão