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Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

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Tenho lá minhas dúvidas se em algum momento da História moderna a humanidade deixou de ser religiosa. Com o Iluminismo, a emancipação das ciências e dos saberes em relação à tutela da religião levou muitos a duvidar da sobrevivência dos sistemas de crenças vigentes no Ocidente. Precipitadamente, penso eu.

A noção de Estados que se fundamentavam a partir do princípio da laicidade, de fato, precisava ser difundida. Afinal, a imposição de qualquer crença religiosa sobre um povo é incompatível com o fortalecimento de sociedades que prezam a democracia como seu modelo de organização. Entretanto a suposição de que a religião perderia a sua força, e, segundo alguns, até mesmo desapareceria, se revela cada vez mais equivocada, principalmente no início do século XXI.

Talvez até o século passado alguns ainda pudessem imaginar que esse caminho do desaparecimento do sujeito religioso fosse se confirmar. Na segunda metade do século XX, aconteceu um fenômeno curioso no Ocidente, quando, em muitos países, houve evasão de indivíduos das organizações religiosas, ao mesmo tempo que aconteceu aumento no interesse por espiritualidades não religiosas. As pessoas não se vinculavam às instituições, mesmo que buscassem caminhos e formas de exercer práticas espirituais.

No começo do século XXI, no entanto, uma nova tendência começou a despontar, e houve o reaparecimento do sujeito religioso. Não apenas pessoas que se diziam interessadas pelo cultivo de uma espiritualidade, mas também indivíduos que optavam por subscrever a sistemas de crenças, defender dogmas, praticar ritos e frequentar templos.

A espiritualidade em ambientes corporativos já foi tema de muitas palestras que fiz. Sempre encontrei respeito, mas confesso que não me recordo de ter escutado, num ambiente como esse, fala tão contundente quanto a de um dos maiores empresários do país num podcast. Ao responder que se considerava um homem de fé, confrontado pela entrevistadora que sugeriu ser “espiritualidade” ou “fé não religiosa”, ele respondeu enfático:

— Não, eu gosto de religião!

Não se trata de caso isolado. O mesmo fenômeno pode ser visto em escolas, universidades, hospitais, nas artes e nos mais diferentes setores da sociedade. A naturalidade com que se fala atualmente do lugar da religião na vida é sintoma do reaparecimento desse sujeito religioso. Creio que isso tenha a ver com a admissão de que existe um papel muito próprio da religião na experiência humana. O universo simbólico religioso, da dimensão mística à dimensão ética, consegue ajudar indivíduos a organizar a vida de uma forma como poucas coisas são capazes. Se um efeito colateral da modernidade foi incutir preconceitos sobre a religião no imaginário social, a pós-modernidade parece ter devolvido um orgulho de pertencimento religioso.

Isso não significa que, como sociedade, faremos o caminho de volta, dando à religião a tutela das demais esferas da vida. Só quer dizer que ter encontrado o caminho da laicidade não corresponde a defender a extinção do sujeito religioso que existe em muitos de nós. A religião não tem valor de sobrevivência à vida, obviamente, tanto que muitos prescindem dela para viver. Mas tem imenso valor de significado, e essa é a razão pela qual sistemas religiosos crescem, resistem e seguirão resistindo aos prognósticos de sua falência.

*Daniel Guanaes, ph.D. em teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo

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