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Nenhum texto curto sobre a Amazônia fará justiça a sua dimensão e a sua complexidade. Há alguns milhões de anos, a dobradura da Cordilheira dos Andes proporcionou a inversão da direção das águas, que passaram a correr para o Oceano Atlântico. Nesse ambiente quente e úmido, estima-se que tenha se aberto a primeira flor do mundo. Nenhum outro lugar do planeta teve tanta importância para a evolução do reino vegetal depois da queda do asteroide que exterminou os dinossauros.

Tempos depois, esse antigo e imenso leito de mar foi colonizado por povos que demoraram muito a se adaptar. A única forma de conviver com esse nicho selvagem foi respeitando os limites da ação humana, o que ainda é a lei dos atuais povos tradicionais que nele vivem. Numa história muito recente da nossa espécie, tentaram domesticá-la de forma brutal.

Parte do problema se dá porque visitar a Amazônia não é o mesmo que conhecê-la. Manaus, a cidade com 2 milhões de habitantes, desenvolvida e próspera, flutua como objeto anômalo no meio de uma floresta tropical intocada. Poucos brasileiros entendem o modelo econômico da Zona Franca de Manaus e seu papel na preservação ambiental; deveriam ler Serafim Corrêa. Muitos tentaram explicar as relações entre o homem e a floresta da Amazônia Ocidental, entre eles Samuel Benchimol e Djalma Batista. Belém tornou-se um limbo entre o Brasil rodoviário e o fluvial. Essa Amazônia Oriental está bem explicada em “Arrabalde”, de João Moreira Salles.

As discussões que acontecem lá fora consideram que o desmatamento zero é a única solução para a compensação das emissões planetárias de carbono, tendo em vista que florestas temperadas não crescem o ano todo com a mesma pujança. Mas a lógica despreza a subsistência de quem vive na Amazônia. Somos líderes na captação de recursos para pesquisas em doenças tropicais, mas o amazônida tem morrido de doenças cardiovasculares, câncer e, sobretudo, em razão da violência que se segue ao aumento do tráfico de drogas na região. Manaus é também uma das capitais mais obesas do país. Sua dieta não é mais a mesma desde que a indústria da alimentação processada invadiu suas palafitas. O lixo à beira do rio, durante a pior seca dos nossos tempos, em 2023, contou muito sobre sua gente.

Desde que as campanhas de vacinação contra a gripe começaram, o Norte do país imunizava sua gente à mesma época do inverno sudestino, quando ali muitos idosos já haviam morrido nos primeiros meses do ano. A estação de doenças respiratórias na Amazônia antecede a do resto do Brasil. Não foi por acaso que as capitais nortistas sentiram o primeiro impacto da pandemia de Covid-19.

Na Amazônia também temos dengue, que se confunde com outras doenças febris como a malária e a febre causada pelo vírus oropouche. A infecção pelo vírus HIV ainda cresce e migra silenciosamente para as comunidades ribeirinhas, onde também o acesso ao soro para tratar os envenenamentos por serpentes é ruim. Tudo isso sobrecarrega um sistema de saúde que opera no limite e tem altíssimo custo, em função das longas distâncias.

O problema dos garimpos ilegais, que se interliga com a saúde dos ianomâmis, não é nenhuma novidade no panorama amazônico. Há décadas, a exploração desordenada tem causado dor e sofrimento. Por isso não é razoável que haja politização sobre tema tão sério e complexo. As iniciativas de implementação de saúde digital pelo Ministério da Saúde — com atendimento e consultoria à distância, novas medicações para malária e grupos de trabalho interministeriais — têm sido iniciativas certeiras para começar a enfrentar o problema.

Quando migrei para a Amazônia, me despi de todos os meus preconceitos e passei a ler mais sobre os naturalistas que primeiro descreveram essas terras, ainda no Império, depois Ferreira de Castro, Márcio Souza, Robério Braga, Milton Hatoum. A Amazônia não cabe num tuíte, precisa ser sentida. É a pátria de todos nós e, nas palavras do saudoso poeta Thiago de Mello: “É a pátria da água”.

*Marcus Lacerda, médico infectologista, é especialista em saúde pública da Fiocruz Amazônia

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