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Depois de pedido de ajuda, primeiras juízas afegãs ameaçadas pelo Talibã chegam ao Brasil

Grupo de sete magistradas e suas famílias desembarcaram esta semana e ficarão em Brasília, em local não divulgado; em agosto, organização internacional fez apelo para que países concedessem vistos humanitários
Grupo de juízas e advogadas afegãs que deixaram o país se reúne com a presidente da Grécia, Katerina Sakellaropoulou, em Atenas, no dia 12 de outubro Foto: ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS
Grupo de juízas e advogadas afegãs que deixaram o país se reúne com a presidente da Grécia, Katerina Sakellaropoulou, em Atenas, no dia 12 de outubro Foto: ALKIS KONSTANTINIDIS / REUTERS

As primeiras magistradas afegãs que receberam vistos humanitários do governo brasileiro começaram a chegar ao país esta semana, cerca de dois meses depois de um apelo internacional para que pudessem deixar o Afeganistão diante de ameaças feitas pela milícia Talibã, hoje no comando do país da Ásia Central.

De acordo com a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), ao todo 26 pessoas desembarcaram até o momento, incluindo sete juízas e três juízes casados com as magistradas, além de suas famílias. Todos ficarão inicialmente em Brasília, em local não revelado, onde devem dar entrada em seus pedidos para a obtenção de refúgio.

“Eu acredito que o processo será rápido porque há uma predisposição do governo brasileiro, dos órgãos públicos e uma situação clara de perseguição no país de origem. O Brasil deve auxiliar no cumprimento dos termos da convenção internacional de direito dos refugiados de 1951”, explicou, em comunicado, o presidente da Ajufe, Eduardo André Brandão.

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A operação de resgate, que ocorre em sigilo, contou com a participação de diversas instituições brasileiras e internacionais, e as negociações foram coordenadas pela Associação de Magistrados do Brasil (AMB) diretamente com a Associação Internacional de Juízas, que fez o pedido de ajuda. Novas chegadas devem ser anunciadas nos próximos dias.

O presidente do Banco do Brasil, Fausto de Andrade Ribeiro, anunciou durante coletiva de imprensa promovida pela AMB que o banco abriu uma conta para receber doações para ajudar as famílias das juízas a se estabelecerem no país e que a Fundação Banco do Brasil estava doando R$ 100 mil. Doações podem ser feitas para a chave Pix pix.nosporelas@fbb.org.br. Além disso, haverá uma campanha que pedirá doações por parte de entidades privadas e organizações, segundo informou a AMB.

Ainda foi informado que haverá ações para inserir as juízas no mercado de trabalho e na sociedade brasileira, o que inclui cursos de português para ajudá-las a se comunicarem. Outras entidades que estão ajudando nesse plano irão dar outros auxílios, como plano de saúde, escola para as crianças que vieram com as juízas e atendimento psicológico, por exemplo. Informações mais detalhadas ainda serão divulgadas, porque o plano está sendo montado, disse a assessoria da AMB.

A situação das magistradas se tornou uma das faces mais visíveis da crise provocada pelo retorno do Talibã ao poder, 20 anos depois de serem afastados pela invasão do país por forças internacionais lideradas pelos EUA.

De acordo com organizações de defesa dos direitos humanos, as juízas mulheres eram cerca de 270, muitas liderando tribunais responsáveis por casos relacionados a abusos e violência doméstica. A simples possibilidade de agressões do tipo irem a julgamento, em um país onde abusos são recorrentes e historicamente impunes, foi vista como um dos principais avanços das duas últimas décadas.

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Além de determinar eventuais prisões de agressores, essas magistradas passaram a conceder o divórcio a mulheres em relacionamentos abusivos, mas, nos últimos meses, mesmo antes da queda do antigo governo, em agosto, passaram a ser vistas como alvos das pessoas outrora punidas por elas.

Homens presos por crimes como estupro, agressão e sequestro, agora livres da prisão, passaram a ameaçá-las, forçando-as a viver nas sombras e a buscar meios de deixar o país. Em janeiro, quando o Talibã já controlava partes do Afeganistão e se preparava para lançar sua ofensiva, duas juízas da Suprema Corte foram mortas por homens armados. Na época, a milícia negou qualquer envolvimento no caso.

— Nós perdemos tudo, nossos trabalhos, nossas casas, a maneira como vivíamos. Estamos aterrorizadas — afirmou ao New York Times Wahida, uma ex-juíza.

Retrocessos

Apesar das promessas iniciais de moderação, o Talibã não deu sinais de que sua segunda passagem pelo comando do Afeganistão não será muito diferente da primeira. entre 1996 e 2001, quando mulheres eram virtualmente impedidas de trabalhar, estudar e exercer cargos públicos, e eram sujeitas a uma rotina de abusos e execuções frequentes e brutais.

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Hoje, embora haja variações entre as diferentes províncias afegãos, mulheres em geral só puderam voltar ao trabalho na educação primária e na saúde, e as escolas secundárias para meninas acima de 12 anos ainda não reabriram. As juízas não puderam retomar suas posições. O Gabinete provisório anunciado pelo Talibã em setembro é formado apenas por homens.

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Diante do cenário de retrocessos, em agosto um grupo de 270 magistradas afegãs enviou uma carta ao governo brasileiro pedindo que enviasse um avião e concedesse refúgio, apontando que ao menos 100 delas corriam risco de vida.

Em setembro, o Brasil anunciou que concederia vistos humanitários a afegãos que desejam fugir do país para escapar da repressão — em discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro destacou a posição de receber refugiados de países em crise, e prometeu documentos para “cristãos, mulheres, crianças e juízes afegãos”, embora a portaria interministerial não faça distinções do tipo.

Restrições

Até o começo do mês, o Itamaraty confirmou ter concedido 30 vistos humanitários e que analisava cerca de 400 pedidos de afegãos. Contudo, uma série de exigências apresentadas pelos postos consulares que atendem os afegãos vêm sendo apontada como entrave à maior parte dos pedidos.

Elas incluem, além de testes RT-PCR e bilhetes aéreos, comprovantes de meios de manutenção no Brasil, incluindo custos de aulas de português e reconhecimento de diplomas, algo apontado como inviável para pessoas que muitas vezes deixaram suas casas apenas com a roupa do corpo.

— As novas exigências são ilegais porque contrariam a Lei de Imigração, que estipula que a acolhida humanitária é um direito, e que deve ser utilizada para proteger pessoas em situação de violação de direitos humanos, que sofrem violações de seus direitos constitucionais em seus países — disse ao GLOBO o defensor público federal João Freitas de Castro Chaves, coordenador do Grupo de Trabalho Nacional para Migrações, Apatridia e Refúgio da Defensoria Pública da União, e que questionava as medidas.

À época, o Itamaraty declarou ao GLOBO que as orientações eram válidas para pedidos feitos com o apoio de instituições privadas e que envolvessem grandes grupos, e que elas não afetam pedidos individuais.