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Juízas tentam fugir do Afeganistão e não ser alvo dos homens que colocaram na prisão

Em 25 de agosto, 270 magistradas pediram abrigo ao Brasil, mas dependiam de visto humanitário
Pessoas que foram evacuadas do Afeganistão chegam ao Aeroporto Internacional de Pristina, no Kosovo Foto: LAURA HASANI / REUTERS
Pessoas que foram evacuadas do Afeganistão chegam ao Aeroporto Internacional de Pristina, no Kosovo Foto: LAURA HASANI / REUTERS

HAIA e RIO — A salvo na Europa após escapar de Cabul, uma juíza afegã descreve como foi caçada por homens que ela havia colocado na prisão e foram libertados pelos combatentes do Talibã, grupo fundamentalista que voltou ao poder no país no último dia 15. O Afeganistão tem cerca de 270 juízas. Algumas conseguiram fugir nas últimas semanas, mas a maioria foi deixada para trás e ainda tenta escapar, de acordo com ativistas internacionais que formaram redes que trabalham 24 horas por dia para ajudá-las.

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“Quatro ou cinco membros do Talibã vieram e perguntaram às pessoas na minha casa: 'Onde está essa juíza?' Eram pessoas que eu coloquei na prisão”,  disse a magistrada à Reuters em uma entrevista em um local não divulgado, pedindo para não ser identificada.

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No último dia 25, 270 magistradas afegãs pediram ao governo brasileito asilo humanitário e um avião para trazê-las ao país. Em carta enviada à Associação de Magistrados do Brasil (AMB), 100 integrantes da associação afegã afirmam terem sido alertadas de que correm risco de vida. De acordo com Renata Gil, presidente da AMB, o plano de retirada está pronto, mas dependiam do visto humanitário.

— Os vistos ainda não foram emitidos porque o Brasil não tem missão diplomática no Afeganistão. As missões diplomáticas mais próximas são no Paquistão e no Irã, mas como o aeroporto de Cabul está fechado, as magistradas teriam que deixar o país por terra, o que é muito arriscado neste momento, afinal, estamos falando do deslocamento de mulheres — explica ao GLOBO. — Mas o governo brasileiro está tentando adequar a portaria a essa realidade.

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Em uma entrevista coletiva logo após a tomada de Cabul, um porta-voz do grupo disse que os direitos das mulheres seriam protegidos, e que elas teriam permissão para trabalhar em setores importantes da sociedade, mas de acordo com a lei islâmica.

A posição do Talibã em relação aos direitos das mulheres ainda não está bem esclarecida. Relatos das últimas semanas indicam que em cidades como Herat, o Talibã vinha proibindo mulheres de irem a escritórios e de frequentarem as universidades, segundo agências internacionais. Na semana passada, um porta-voz do grupo extremista chegou a aconselhar as mulheres a não trabalhar e ficar em casa. O porta-voz alegou que elas não estavam seguras na presença de soldados.

Mas mulheres que trabalham na Justiça se tornaram alvo antes mesmo da tomada do país pelo Talibã. Duas juízes da Suprema Corte foram mortas a tiros por homens armados não identificados, em janeiro deste ano. Um porta-voz do Talibã disse, à época, que o grupo não estava envolvido na morte.

Mas, agora que vários prisioneiros foram libertados em todo o país,  “a vida das juízas realmente corre perigo”, afirmou a magistrada afegã à Reuters.

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A juíza, que escapou com a ajuda de um coletivo de voluntárias de direitos humanos da Associação Internacional de Mulheres Juízes (IAWJ), mantém contanto com colegas em seu país, que enviam “mensagens de medo e terror total”. “Elas me dizem que, se não forem resgatadas, suas vidas correm perigo diretamente”.

Ativistas são alvos

Além delas, cerca de mil outras defensoras dos direitos humanos podem estar na mira do Talibã, de acordo com Horia Mosadiq, uma ativista de direitos humanos no país.

— Prisioneiros libertados telefonam para fazer ameaças de morte a juízas, promotoras e policiais, dizendo 'nós iremos atrás de vocês' — disse.

O ministro da Justiça britânico, Robert Buckland, disse na semana passada que o Reino Unido retirou nove juízas do país e trabalha para fornecer passagem segura para mais “pessoas muito vulneráveis”.

— Muitas dessas juízas foram responsáveis por administrar o Estado de Direito e, com razão, temem as consequências que agora podem enfrentar com a ascensão do Talibã.

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Vários ativistas de direitos humanos e jurídicos envolvidos no esforço para resgatar as juízas dizem que os países ocidentais não fizeram de sua remoção uma prioridade após a queda de Cabul.

— Os governos não tinham interesse em retirar pessoas que não eram de sua própria nacionalidade — disse Sarah Kay, uma advogada de direitos humanos baseada em Belfast, na Irlanda, e membro da Atlas Mulheres, rede internacional de advogados.

Kay está trabalhando online com um grupo de voluntários conhecido como “Dunkirk digital”, batizado em homenagem à retirada das tropas britânicas da França ocupada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Com a ajuda de grupos de bate-papo em redes sociais e contatos pessoais, a ativista já ajudou centenas de pessoas a fugirem.

Na IAWJ, uma equipe de seis juízas estrangeiras também coordenou informações, fez lobby junto aos governos e organizou fugas.

— A responsabilidade que carregamos é quase insuportável, porque somos uma das poucas pessoas que assumem responsabilidade por esse grupo —  disse uma das líderes do esforço, Patricia Whalen, juíza americana que ajudou a treinar afegãs em um período de 10 anos. — Estou furiosa. Nenhuma de nós deveria estar nesta posição.

Segundo a presidente da Associação Brasileira de Juízas, vários segmentos estão entrando em contato com a entidade.

— São vários profissionais desesperados, pedindo ajuda para sair sair do Afeganistão.

(Colaborou Thayz Guimarães)