Amigo de Rita Lee, Nelson Motta apresenta segundo volume de autobiografia da cantora

‘Emocionante do início ao fim, nunca é sentimental, mas narrado com secura, elegância e ironia’, descreve colunista

Por Nelson Motta; Especial Para O Globo


Rita Lee na época do lançamento de seu primeiro disco homônimo, em 1979 Antonio Carlos Piccino/Agência O GLOBO

Fomos amigos a vida inteira, desde a primeira vez que a vi, com 20 anos, nos Mutantes, cantando com Gilberto Gil em “Domingo no parque” no Festival da Música Brasileira de 1967. E me encantei por ela, como todo mundo, pelo resto da vida. Como todo o Brasil. Acompanhei de perto a sua carreira, fomos parceiros de músicas e aventuras, compartilhamos sucessos e fracassos, loucuras e confidências, testemunhei seu crescimento até se tornar uma giganta da cultura brasileira, e nos despedimos há um mês, quando li sua “Outra autobiografia” (Globo Livros, R$ 64,90), que ela me enviou pelo Guilherme Samora, com compromisso de segredo e missão de confiança de publicar a apresentação do livro hoje, dia do lançamento.

Cada parágrafo é parte de uma carta de despedida de 175 páginas, escrita com intensidade e sinceridade extremas, com a razão e a emoção em equilíbrio e conflito, contando, entre lágrimas e gargalhadas, seus últimos dias a partir do diagnóstico de câncer, em março de 2021, e indo além de um emocionante relato de vida para ganhar alta qualidade literária. Emocionante do início ao fim, nunca é sentimental, mas narrado com secura, elegância e ironia, com o pleno domínio das palavras, com que ganhou a vida e fez um monte de gente feliz.

Coragem e paixão

Rita não é só música e poesia, é literatura e história de uma mulher extraordinária, a mais completa tradução não só de São Paulo, mas do melhor do Brasil e do seu tempo, com sua liberdade, independência e talento, e uma coragem assombrosa de viver com paixão a sua vocação de grande artista. Ao contrário de seu autoepitáfio, além de gente fina, ela foi e será sempre um grande exemplo para as mulheres, e para os homens, com sua vida e arte, por sua força transformadora e rebeldia indomável contra a autoridade e o machismo, com inteligência cintilante, humor e coragem, como mostrou em sua “Uma autobiografia” (2016, Globo Livros).

Rita Lee nos palcos: expressividade e força feminina que liderou gerações do rock brasileiro

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Agora, com mais coragem ainda, ela expõe em detalhes seus últimos momentos, e seus sentimentos diante do sofrimento e das dores das químios e rádios e físios e remédios, da despedida diária da família, dos bichos, do jardim de casa, a percepção, e aceitação, da proximidade do fim, mas lutando até o final, emocionando e divertindo o leitor com a competência de uma escritora de qualidade e estilo.

O seu diário também traz memórias, reflexões e opiniões sobre religião, espiritualidade, política, filosofia, arte, cultura, feminismo, sexo, drogas e música brasileira, suas experiências com o amor, a família, os animais, suas viagens ao fundo dos poços das drogas e do alcoolismo, e sua saída de todos, fortalecida e renovada, com uma maturidade cheia de sabedoria e ironia. E produtividade: seu legado musical colossal será cada vez mais valorizado com o tempo, e ela ainda teve tempo para escrever este livro e fazer novas músicas com Roberto.

Roberto é um caso sério no livro. Coprotagonista de uma arrebatadora história de 45 anos de amor com Rita, seu companheirismo e acolhimento emocionam a cada frase, ele está presente em todos os momentos, junto com o filho Juca, com uma entrega e um amor sem limites, que merecem o amor de Rita e estão à sua altura.

A cada página fui me despedindo de Rita, que nunca foi tão Rita e tão verdadeira como nessas confissões de sua convivência com os efeitos das químios e sua extrema fraqueza (quando foi diagnosticada com o tumor estava com 37 quilos, “pelada debaixo do chuveiro parecia uma franguinha”). Rita vive heroicamente cada dia, mas sempre ironizando seu heroísmo e fazendo piadas com a doença e a morte, fiel à sua máxima “brinque de ser sério, leve a sério a brincadeira”.

Santa Rita de Sampa

Elegante, refinada e sofisticada, Rita também é grossa, impaciente, tirânica, paranoica, malandra... “Sou macaca velha de hospital e hospício e mocozei um tarja preta na nécessaire. Dizia que precisava ir ao banheiro, enchia a cara de “tarjas” e saía do toalete mais “calminha”. “Me senti culpada por ter tomado tarja preta depois de 15 anos limpa, foi uma recaída relâmpago humilhante (...) depois que sumiram com meus tarjas passei três dias sem dormir, que nem uma zumbi arrastando correntes pelo quarto e o corredor do hospital. A medicação que me davam parecia pó e seu efeito anfetamínico me deixava falando até com as paredes. Segurava as enfermeiras pelo uniforme e fazia altos discursos sobre os políticos e seus crimes contra o país. E me exaltava tanto que acabavam me dando um sossega-leão e o ódio dava lugar ao choro pelos brasileiros que estavam morrendo por falta de compaixão dos canalhas no poder.”

Rita Lee em seu sítio no interior de São Paulo — Foto: Roberto de Carvalho/Reprodução Instagram

Uma das partes mais emocionantes é a visita que Rita fez à grandiosa exposição montada pelo filho Juca e o cenógrafo e figurinista Chico Spinoza em 18 salas do Museu da Imagem e do Som de São Paulo, já muito debilitada, na cadeira de rodas, revendo todos os seus figurinos, fantasias, instrumentos, discos, shows, seus objetos queridos, seus desenhos e letras de música, as fotos e vídeos dos grandes momentos de sua trajetória fulgurante e inesquecível.

Tornar esta exposição permanente é a melhor homenagem que São Paulo poderia prestar à sua mais completa tradução, transformando-a em memória, história e atração turística, catedral do culto de Santa Rita de Sampa.

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