Estranho magnetismo e inquietação marcam ‘O tagarela’, livro de Louis-René des Forêts

Inédita no Brasil, novela do autor francês é monólogo com narrador que remete a Dostoiévski e à verborragia das redes

Por Henrique Balbi; Especial Para O GLOBO


‘O tagarela’, livro de Louis-René des Forêts Reprodução

Há um estranho magnetismo em “O tagarela”, de Louis-René des Forêts, publicado pela primeira vez no Brasil. Nesta novela curta em forma de monólogo, o leitor é impelido até a última página, intrigado pelas contradições de um narrador que, quanto mais fala, mais parece esconder algo — enigma que continua depois de fechado o livro.

Mal se pode falar em trama, de tão esparsa. Um homem sem nome nos conta de suas crises de tagarelice. Teve a primeira diante de uma falésia, onde porém não havia interlocutor. Já a segunda, que ocupa boa parte da novela, se dá num bar, em meio a casais dançando, bebendo, seduzindo.

Convencido a ir ao bar por seus amigos, o narrador se embriaga. Troca olhares com uma mulher e se aproxima. Ela não está sozinha: um homem ruivo se irrita, ameaçando o narrador. A mulher não se incomoda; pelo contrário, aceita o novo parceiro de dança. Eufórico com o aparente triunfo, envaidecido pelos olhares e expectativas de todo o bar, inclusive dos amigos, o narrador se entrega então à segunda crise de tagarelice.

Língua solta

Aqui se percebe uma das contradições do protagonista. Esses eventos miúdos nos surgem inchados: antes de expô-los, e mesmo durante, o narrador dá voltas. Fala de si, antecipa as reações que imagina causar nos leitores, faz conjecturas, comenta, disseca, se desmente. Mas esconde o que disse à mulher. No centro da eloquência hiperarticulada, um silêncio.

Contradição do narrador, mas não do livro. No jogo entre o que se diz e o que se cala, Forêts consegue produzir em nós a sensação de se estar preso à tagarelice, em vez de apenas apresentá-la. Mais do que isso, a discrepância entre a enxurrada de palavras e a elipse revela muito a respeito do próprio narrador — inconfiável, para dizer o mínimo.

Nossa desconfiança aumenta quando, ao final da crise verborrágica, a única resposta da mulher é uma gargalhada. O resto do bar ri junto. Humilhado e ofendido, o narrador vai embora. Xinga a mulher, nos diz que passa a desprezar quem há pouco o fascinava. Caminha pela cidade coberta de neve, quando tem a impressão de que está sendo seguido.

É o momento mais tenso da novela. Forêts maneja com habilidade as sensações que invadem o narrador. Apesar ou por causa do perigo, a verborragia continua, bem como a tendência autocentrada. Ele se pergunta, e nós com ele, se não seria apenas um delírio persecutório. Para quem imagina o tempo todo seus interlocutores, um público a que se dirige, não seria estranho inventar uma ameaça. No entanto, é plausível que a noite na cidade o exponha à violência. E pouco antes, no bar, o narrador não foi exatamente vítima — também humilhou e ofendeu.

Registrando a minúcia dos sentimentos que lhe ocorrem, o próprio narrador percebe uma atração curiosa, contraditória, por uma punição. Um castigo lhe parece inevitável, quase necessário e talvez até redentor: “chegava a me arrepender de [sentir medo] e a desejar experimentar um castigo do qual não tinha dúvidas de sair regenerado”. A cidade vazia, a neve, a psicologia atormentada, a tendência verborrágica e a relação ambígua com a punição não deixam dúvida: o autor evoca Dostoiévski, entre outros autores, como se lê no posfácio de Pablo Simpson.

Fôrets não estava sozinho. O tagarela saiu pela primeira vez em 1946, numa França recém-libertada e constrangida pelo colaboracionismo de Vichy. Forêts havia participado da Resistência, assim como Camus (outro leitor de Dostoiévski) e Beckett (outro criador monólogos implosivos). Será insignificante que tenham se valido de autores e procedimentos similares?

A novela ganharia todo um outro sentido, se lida como uma tentativa de elaborar, literária e indiretamente, um trauma social. Quando acusa o público, quando admite que quer enganá-lo, quando denuncia o vazio e a falta de sentido de suas palavras, o narrador toca num mal-estar que talvez tenha raízes históricas palpáveis.

Ao mesmo tempo, o solipsismo, a tagarelice e o ressentimento no livro podem nos parecer familiares, apesar do anacronismo. Basta uma visita rápida ao subterrâneo das redes sociais para encontrar uma atmosfera muito parecida. Daí talvez o magnetismo dessa novela curta e inquietante — suas contradições ainda não deixaram de ser as nossas.

‘O tagarela’

  • Autor: Louis-René des Forêts
  • Tradução: Pablo Simpson
  • Editora: Carambaia
  • Páginas: 144
  • Preço: R$ 87,90

Henrique Balbi é escritor e professor de Literatura

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