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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

A escritora Vilma Arêas precisa estar sempre preocupada com alguma coisa. É do temperamento dela. Anos depois da morte de seu segundo marido, o jornalista Fausto Cupertino, começou a se perguntar: por que eles nunca mais haviam procurado Tigrão? Fausto era comunista, fora preso e torturado pela ditadura. No cárcere, fez amizade com Tigrão, um ex-policial, membro do esquadrão da morte que acabara na prisão e era desprezado por outros detentos por seu passado de violência. Tigrão salvou a vida de Fausto quando, mesmo preso, ele foi sequestrado pelas forças de repressão e levado do Rio, onde cumpria pena, para São Paulo. O ex-policial acionou seus contatos nos porões do regime e confortou Vilma: “Eles não são loucos de prejudicar um amigo meu”.

Vilma começou a contar esta história aos amigos. Todos diziam a mesma coisa: “Quando você vai escrever essa história?” Ela resistiu, resistiu e, enfim, cedeu. Saiu uma história longuíssima para os padrões de uma contista conhecida pela concisão: 19 páginas. “Tigrão” é o título do conto e do livro no qual foi incluído, que, por sua vez, abre o volume “Todos juntos”, reunião de toda a ficção da autora, que será lançada nesta quinta-feira (10), às 19h, na livraria Megafauna, em São Paulo. Desde 1976, Vilma publicou sete livros de contos. Três deles venceram o Prêmio Jabuti: “Aos trancos e relâmpagos” (1988), “A terceira perna” (1992) e “Um beijo por mês” (2018).

‘Escritora meio secreta’

Na “Apresentação” de “Todos juntos”, o professor de literatura da USP Samuel Titan Jr. afirma que Vilma é “uma escritora meio secreta”. Os livros que ela publica a cada punhado de anos por diferentes editoras às vezes somem das livrarias. Sem falar que ela tem horror a se vender por aí.

— Eu escrevo para mim, para me equilibrar. Minha filha me perguntou: “o que é se equilibrar?”. Difícil explicar. É dar sentido às coisas, ter algum controle. Porque fora da escrita eu não controlo nada — diz Vilma, que recebeu o GLOBO em sua casa, em São Paulo. — Me custa muito escrever uma coisa que eu gosto, mas quando acontece eu fico contentíssima. Me dá uma satisfação danada, que me sustenta por meses.

Vilma Sant’Anna Arêas nasceu em Campos dos Goytacazes (RJ) e gostava tanto de livros que seu castigo era ser proibida de ler por uma semana. Além de escritora premiada, também é uma crítica literária reconhecida por seus pares. É professora aposentada do Departamento de Teoria Literária da Unicamp. Foi Roberto Schwarz, um dos maiores intérpretes de Machado de Assis, quem a indicou para dar aulas lá depois de ler seus textos. Eles nem se conheciam. Esses dias, ele telefonou para elogiar o livro novo.

Da obra crítica de Vilma, destaca-se “Clarice Lispector na ponta dos dedos”, livro que ressalta a preocupação social presente na obra da autora de “A hora da estrela”. Amiga de Vilma, Clarice era cobrada por não se posicionar politicamente de forma explícita.

— No Rio, eu fiz psicanálise em grupo com o Jacob David Azulay e um dia lá entrou Clarice, toda emburrada. Não abriu a boca. Eu estava saindo apressada e ela veio atrás de mim, sempre devagar: “Vilma! Vilma!”. “O que é, Clarice?” “Ele (Azulay) gosta mais é de você” — lembra a escritora. — Clarice era difícil, mas era uma pessoa e tanto! Foi muito importante para mim tê-la conhecido. Ela escrevia sobre coisas que lhe aconteciam. Tanto que hoje eu leio os textos dela e sei do que ela está falando.

Vilma também escreve sobre o que acontece com ela. Assim como “Tigrão”, a maior parte de seus contos são autobiográficos. No futuro, nenhum crítico terá muito trabalho para provar sua preocupação social. Salta aos olhos seu interesse pelos cenários urbanos e pelas classes desfavorecidas. Em seus contos, um mendigo que a chama de “paulista filha da puta”; um jovem empregado do prédio que tem uma reação surpreendente ao contemplar a vista do apartamento do filho dela, imóvel no qual todo mundo achava defeito; um taxista viúvo que lhe tascou um beijo — ela até gostou, chegou a propor que se beijassem uma vez por mês, mas hoje passa longe do ponto dele.

Várias idades dentro de si

Essa opção literária pelos pobres aparece também nas histórias que ela vai contando espontaneamente durante a conversa com o GLOBO, como se narrasse contos que ainda não escreveu. Ela lembra que a mãe dava aulas em um orfanato e, um dia, enfeitou os cabelos das meninas com lacinhos de fita e foi repreendida pela diretora por ensinar-lhes a vaidade. Também se recorda de quando era professora de meninos pobres no subúrbio no Rio. Um deles, inteligente e bagunceiro, propôs assistir às aulas pela janela para não atrapalhar a turma (a professora topou, mas o diretor implicou). Outro, Gaspar, não tinha dente e, no recreio, sempre lhe pedia um gole de coca-cola. Quando Vilma disse que deixaria as aulas, ficou tão revoltado que ela pensou que fosse apanhar, mas ele se limitou a arrancar o colar do pescoço dela, botá-lo em si mesmo e sair da sala esbravejando.

Vilma completa 87 anos no mês que vem. Às vezes ainda se apaixona, mas finge que nada aconteceu. Sente que tem várias idades dentro de si e reclama que a velhice lhe trouxe uma sensação inédita: cansaço.

— A proximidade da morte é estranhíssima, viu? Fico pensando que daqui a pouco eu vou morrer. Será que duro mais cinco anos? Queria durar mais 10. Aí talvez dê tempo de fazer outro livrinho.

Material para isso ela certamente tem.

Capa de "Todos juntos", reunião da ficção de Vilma Arêas publicada pela Fósforo — Foto: Reprodução
Capa de "Todos juntos", reunião da ficção de Vilma Arêas publicada pela Fósforo — Foto: Reprodução

Serviço:

"Todos juntos"

Autora: Vilma Arêas. Organização: Samuel Titan Jr. Editora: Fósforo. Páginas: 560. Preço: R$ 129,90.

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Eles são uma espécie de escritura sagrada da cidade, versículos em torno dos quais giram memórias felizes da aldeia. Deviam ser textos imexíveis, cláusulas pétreas que ajudaram a erigir a civilização ao redor. Somos o que comemos