Cultura
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Por — Rio de Janeiro

Jean-Baptiste Debret desembarcou no Brasil, em 1816, pronto para registrar em imagens o cotidiano daquela jovem nação. A serviço da Coroa portuguesa, exerceria uma tarefa chapa branca: basicamente, retratar o imperador, a Corte e suas benesses. Mas logo o francês começou a pintar também as mazelas sociais, com ênfase nos maus-tratos à mão de obra do país: migrantes, indígenas, mestiços, negros — sobretudo, os escravizados. Suas “denúncias”, entretanto, não repercutiram quando começou a publicá-las, já de volta a Paris, e só recentemente têm sido atualizadas por artistas brasileiros que entendem na pele o que o francês quis dizer. Mais uma vez, e agora graças a Debret, a realidade das ruas atropelou a versão contada pela História oficial.

É a partir dessa ideia que o estudioso francês Jacques Leenhardt constrói “Rever Debret”, ensaio inquietante e sob medida para quem acompanha origens e fins da arte brasileira.

Diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, Leenhardt conta que o pintor chegou ao Rio com 47 anos e larga experiência de vida; presenciara, por exemplo, a decapitação de Luís XVI e Maria Antonieta, em 1793, fato deveras marcante para sua consciência política e que reforçaria sua paixão libertária.

Ao fim da era napoleônica, Debret sofreu perdas na vida pessoal e profissional, mas manteve a boa reputação. Acabou contratado para a chamada Missão Artística Francesa, ao lado de nomes como Nicolas-Antoine Taunay e Grandjean de Montigny, entre outros, e logo se tornou o principal integrante da equipe.

Com recursos oficiais, Debret acompanhou a família real por todos os cantos do Rio de Janeiro. Foi uma testemunha privilegiada das manhas da elite e das agruras da cidade.

E assim se passaram 15 anos. Voltou para a França na esteira da crise que despachou o então imperador Dom Pedro I para tocar sua vida em Portugal. A tarefa do pintor do império brasileiro estava encerrada por aqui.

Em Paris, Debret começou sua obra definitiva. Sabia que, diferentemente do que dizem, nem sempre “uma imagem vale mil palavras” — com frequência, é preciso contextualizá-la, e foi a isso que o veterano pintor dedicou seu tempo. Não queria ambiguidades, interpretações errôneas. Tratou de escrever textos que explicavam as 132 pranchas litografadas, tecendo um estudo contundente sobre o que viu, sem disfarçar o tom crítico. A tal paixão libertária, afinal, seria incoerente com o regime escravocrata que presenciou tão vivamente no Rio.

Assim fez. Sua “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil” foi publicada entre 1834 e 1841. E fracassou. Ninguém deu bola, até porque a obra fugia do apelo exótico que tanto atraía os interessados nas terras brasileiras. Não havia “indígenas emplumados” em florestas virgens, mas a dor da escravidão sem dó. Não é bonito de ver, e ninguém queria refletir a respeito.

O livrão, em três volumes, não vendeu nada, mas o recado ficou engavetado.

Constituição

Segundo Leenhardt, a obra de Debret começou a ser novamente percebida no Brasil durante o movimento modernista, nos anos 1920 — ainda assim, focando mais na questão indígena e no “tupi or not tupi”. Outro marco foi a Constituição de 1988, que abriu espaço para o conceito de cidadania — e daí para este ganhar voz nas artes foi um pulo, como hoje se vê na literatura, no audiovisual ou em exposições que percorrem o país e o mundo inteiro.

No caso específico do livro de Lennhardt, o que os nossos contemporâneos perceberam foi que Debret já era um respeitável veterano na crítica social via artes plásticas. Duzentos anos depois de seus primeiros registros no calor da hora, é nítido que as moscas mudaram, mas a base social que as mantém vivas é a mesma. O jeitão patriarcal — talvez saudoso da prática escravagista — exala tanta desigualdade quanto na época do império brasileiro, ou até antes. O passado colonial ainda pulsa.

Acima, uma obra de Debret, atualizada, abaixo, por Heberth Sobral — Foto: Reprodução
Acima, uma obra de Debret, atualizada, abaixo, por Heberth Sobral — Foto: Reprodução

Exemplos desses diálogos citados por Lennhardt são vários, e alguns poucos ilustram este texto. Acima, nas palavras do estudioso francês, o mineiro Heberth Sobral mostra como “são sempre as personagens de cor que estão ao serviço das que se utilizam dos meios de transporte em voga em cada época”.

Na imagem acima, a maranhense Gê Viana ilustra a reapropriação dos frutos do trabalho: “em vez de caixas de bens, o esforço físico serve ao transporte de caixas de som para a festa que se anuncia”, enquanto o amazonense Denilson Baniwa garante a precisão do tiro do caçador com o uso de uma rede wi-fi. Carnavalização é a palavra-chave.

A análise de Lennhardt se estende também a obras de outros contemporâneos nossos, como Jaime Lauriano e Tiago Gualberto.

Em todos os casos, a apropriação de ideias do pintor francês é óbvia — mas sem estresse. Os artistas de hoje não estão copiando, e sim comentando, reforçando, atualizando as denúncias de Debret. É como se fossem samplers de antigas cantigas modorrentas costurados com o pancadão mais acelerado do funk. O anacrônico ganha novo andamento, esbanja volume, faz-se ouvir. Cai na dança quem entende.

E por que foi escolhida justamente a obra de Debret, e não a de outros pintores viajantes que tão bem exploraram o Brasil d’antanho? Cada um a seu tempo, Ender, Rugendas e Taunay, entre outros, não são de se jogar fora.

Lennhardt identifica que Debret ganhou cartaz graças à sua forte presença em livros escolares nas últimas décadas. O artista francês — que morreu em 1848, aos 80 anos — tornou-se fonte fidedigna sobre os temas que registrou. E vai além. Como diz o sociólogo francês, “o seu modo de nos tocar ultrapassa a compreensão que temos (das suas imagens) e a interpretação que podemos elaborar.”

Arte é isso.

Serviço:

‘Rever Debret’

Autor: Jacques Leenhardt. Tradutor: Samuel Titan Jr. Editora: 34. Páginas: 136. Preço: R$ 79. Cotação: Ótimo.

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