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Cultura Música

Crítica: Oriundo do black metal, Deafheaven promove sentimental e energético jogo de luz e trevas

'Ordinary corrupt human love' é o quarto álbum da banda de São Francisco
O grupo americano Deafheaven acaba de lançar o disco 'Ordinary corrupt human love' Foto: Divulgação
O grupo americano Deafheaven acaba de lançar o disco 'Ordinary corrupt human love' Foto: Divulgação

RIO - O rock cansou de esperar por salvação, mas em seus suspiros volta e meia ele tem algo de relevante a dizer. Em meio a uma infinidade de bandas novas que fraturam o estilo ao ponto de não mais se reconhecer o que há de rock no resultado final, os californianos do Deafheaven propõem a conciliação. Fundado em São Francisco em 2010, o grupo parte de um dos subgêneros mais impenetráveis e menos comerciais do gênero — o black metal — para conceber, em 2018, um disco com sabor de clássico, dentro da grande tradição.

“Ordinary corrupt human love”, quarto álbum do Deafheaven, que foi lançado no último sábado, almeja a grandeza insistindo numa combinação de brutalidade e delicadeza, luz e sombras, que não só está em perfeito equilíbrio, como serve de veículo para o mais vistoso desfile de sentimentos que se poderá encontrar num disco este ano. A banda que seguia em seu primeiro álbum, ainda que com pouca ortodoxia, o cânone do black metal — caos, sofrimento e trevas em forma de rock, com gritos, guitarra serra-elétrica e bateria britadeira — torna-se um outro animal sentimental.

O caminho que o Deafheaven percorreu até o novo disco tem marcos claros: ele começa no romantismo gótico do Cure, passa pela psicodelia altamente emocional e muscular dos Smashing Pumpkins e tira grande proveito dos experimentos atmosféricos que os Deftones promoveram a partir do heavy metal mais agressivo. “You without end”, a faixa que abre “Ordinary corrupt human love” (título tirado do livro “Fim de caso”, do escritor inglês Graham Greene) é o melhor exemplo da dinâmica que põe o grupo pau a pau com seus inspiradores: uma doce sequência de acordes de piano conduz a canção ao mundo de pesadelo do Deafheaven (gritos, gritos e gritos) sem que o ouvinte registre solavancos.

É um disco de climas que vão sendo construídos com paciência — das sete faixas, quatro ultrapassam os 10 minutos de duração — e muito esmero: ao contrário de muitos dos discos de black metal, a sonoridade é clara e potente, possibilitando que se aprecie as sutilezas de cada instrumento. Fundador do grupo, o guitarrista Kerry McCoy domina todo o vocabulário sombrio do metal, mas sabe conjugá-lo com uma boa dose de rock clássico e de pós-punk. É um dos músicos mais capacitados de um gênero que há alguns anos busca novas cores, com bandas como a americana Liturgy e a francesa Alcest.

NAVEGAÇÃO SEGURA

Graças à coesão da seleção, fica difícil apontar as melhores faixas de “Ordinary corrupt human love”. Em seus mais de 11 minutos de duração, “Honeycomb” navega por mares revoltos com a segurança e a graça do melhor Smashing Pumpkins. Onírica, beirando a narcose guitarrística dos Cocteau Twins, “Canary yellow” abre alas para a violência metálica como se os dois estilos musicais nunca tivessem sido separados. “Near” remete ao velho Cure, com os toques do rock shoegaze do começo dos anos 1990, de Ride e Chapterhouse. E no fim, o piano volta à cena em “Night people”, faixa que tem a participação da cantora Chelsea Wolfe e na qual o cantor George Clarke adota registro de crooner dark. Uma sensualidade misteriosa e irresistível paira no ar.

Cotação: Ótimo

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