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Cultura Música

Crítica: Kamasi Washinton sai vencedor no embate entre talento e ambição

Expoente do novo jazz, saxofonista americano reelabora o melhor do estilo nos anos 1950 a 1970 em LP quádruplo
O saxofonista, compositor e arranjador americano Kamasi Washington Foto: Reprodução
O saxofonista, compositor e arranjador americano Kamasi Washington Foto: Reprodução

RIO - Entre os músicos mais jovens que trabalham para que o jazz atravesse os novos tempos sem perder seu alto nível de elaboração, o espírito aventureiro e a capacidade de comunicar toda uma gama de sentimentos, o americano Kamasi Washington é único.

Pilar de uma cena predominantemente negra de Los Angeles, que soube flexibilizar seus músculos antes de partir para os projetos autorais (em seu caso, colaborando com uma gama de artistas que vai do mítico baixista de jazz Stanley Clarke ao rapper Kendrick Lamar), o saxofonista de 37 anos encara, mais do que os contemporâneos, a sua atividade como um sacerdócio. “Heaven & Earth”, coleção de gravações que ele lançou na semana passada, é só mais uma prova disso.

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Se você nunca atravessou os 172 minutos de “The Epic”, seu álbum de estreia de 2015 , prepare-se: o novo disco tem 144, divididos nos lados “Earth” (mais extrovertido, mundano) e “Heaven” (mais interiorizado, espiritual). Só que nesta sexta Kamasi liberou no streaming “The choice”, um EP de 38 minutos com as músicas que foram incluídas na edição quádrupla, em LP, de “Heaven & Earth”.

Lançado pelo selo Young Turks — de artistas eletrônicos altamente emocionais como xx, FKA twigs e Sampha —, a nova epopeia do saxofonista é uma reelaboração, com sensibilidade contemporânea, de boa parte do que o jazz produziu de melhor entre os anos 1950 e 1970. E também a prova dos nove do embate entre ambição e talento de um músico, arranjador e bandleader com uma visão de longo alcance.

Com muito espaço para desenvolver suas ideias, e acompanhado pelos seus músicos de fé — os baixistas Thundercat e Miles Mosely, os pianistas Cameron Graves e Brandon Coleman, os bateristas Ronald Brunner Jr. e Tony Austin, entre outros —, Kamasi Washington introduz esse seu novo acontecimento com “Fists of fury” (a primeira do disco 1, “Earth”), releitura estendida do tema do filme de Bruce Lee, com elementos de funk e música latina e versos cantados por Patrice Quinn e Dwight Trible que evocam a luta dos negros nos EUA: “Nosso tempo como vítimas acabou / não vamos mais pedir justiça / vamos é partir para a retaliação”.

Corais e cordas são recursos dos quais Kamasi abusa ao longo do disco para dar grandiosidade e um certo sabor místico ao disco, mas o mais apreciável é a coleção de conversas que os músicos estabelecem ao longo das faixas. O solo de teclados de Brandon Coleman em “Can you hear him”, a conexão da banda nas sinuosidades latinas e descaminhos free jazz de “Hub tones” (do trumpetista Freddie Hubbard, falecido em 2008) e a beleza dos climas da épica “The invincible youth” fazem a audição de “Earth” ser percorrida com o mais puro prazer. Até mesmo uma canção simples, mais voltada para o soul, como “Testify”, não destoa do conjunto dada a qualidade do instrumental e dos vocais.

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Em “Heaven”, como se poderia esperar, a coisa corre mais solta, com faixas que frequentemente vão além dos 10 minutos de duração. A de abertura, “The space traveller’s lullaby”, bota para rachar na beleza, com direito a momento orquestral e outro de sax a capela. A complexidade da rítmica africana se apresenta em “Vi lua vi sol”, que tem vocais eletronicamente processados.

O groove fala alto em “The psalmist”, composição do talentoso trombonista da banda, Ryan Porter. E a viagem termina com “Will you sing”, que conjuga baixo alienígena, corais religiosos e a quebradeira jazz numa faixa de muita força. Há muito mais entre o Céu e a Terra de Kamasi Washington do que se pode perceber numa vã audição.

Cotação: Ótimo