Cultura Música

'Meu coco': Caetano Veloso une presente, passado e futuro em novo disco

As muitas vozes que reverberam na cabeça do cantor se traduzem na torrente poética de canções que dialogam com a produção da nova geração e com sua própria história musical
O cantor Caetano Veloso Foto: Leo Aversa / Divulgação
O cantor Caetano Veloso Foto: Leo Aversa / Divulgação

Havia muitas vozes a reverberar na cabeça do Caetano Veloso pandêmico, e a tarefa de organizar a polifonia resultou em “Meu coco” — um disco sem unidade aparente, lançado quase nove anos após “Abraçaço” , o álbum de inéditas anterior, que fechou o ciclo com a Banda Cê. Essas muitas vozes, os muitos acontecimentos do país e do mundo, os muitos Caetanos e os muitos músicos que o acompanharam ao longo da carreira estão resumidos e representados numa coleção que ele bem define como sendo de “quantidade e intensidade”, na qual “cada faixa tem vida própria”.

Caetano Veloso fala do novo disco, 'Meu coco' (Sony), em que afirma a brasilidade e manda recado a Bolsonaro no refrão: ‘Não vou deixar você esculachar com a nossa história’. O trabalho, produzido durante a pandemia, é o primeiro álbum da carreira que traz apenas composições próprias e nenhuma parceria. Ele soa como uma resposta do compositor de 79 anos ao ataque contra a ideia de um país plural.

Cores e nomes se sucedem na torrente poética do álbum desse vovô nervoso, teimoso e manhoso para quem hoje “há poemas como jamais / ou como algum poeta sonhou” (versos de “Anjos tronchos”). Num diálogo da contemporaneidade com sua própria obra, Caetano se ocupa de pensar no futuro personificado pelo querubim-curumin de “Autoacalanto”, pelo Enzo Gabriel da canção com o mesmo título (“qual será seu papel na salvação do mundo?”) e por todos os adolescentes (mais índios e padres e bichas, negros e mulheres) que fazem o carnaval.

Gloria Groove e os cancelados: 'Não significa que eu estou defendendo o que eles fizeram. Só que a carapuça caiu'

A grandeza e a vitalidade da música brasileira (que afastam o país da beira do abismo), o cantor louva, artista a artista, em “Meu coco” e “GilGal” (esta, com percussões do filho Moreno). Já em “Sem samba não dá”, ele recorre ao mais emblemático dos estilos nativos (em uma moldura tradicional) para enfileirar, ao sabor do ritmo, os nomes da multifacetada juventude musical — dando-se até ao desplante de rimar Baco Exu do Blues com “gente pra chuchu”.

As sonoridades mais atuais, Caetano as incorpora principalmente a “Não vou deixar”, canção de amor e/ou política, com piano elétrico e sintetizadores a cargo do novato Lucas Nunes (seu braço direito no disco), funk carioca com percussão (pelas mãos de Vinicius Cantuária, da velha Outra Banda da Terra do cantor) e — como se não fosse nada estranho — um solo de violoncelo do antigo colaborador Jaques Morelenbaum. Das grandes canções dos nossos tempos soturnos (como o são “Trevas”, de Jards Macalé , e “OK OK OK” , de Gilberto Gil ), “Anjos tronchos”, por sua vez, revive a banda Cê na guitarra crua e desconcertante de Pedro Sá.

Presença perene nas canções de Caetano Veloso, a miscigenação e toda a questão racial voltam com seus muitos matizes em “Cobre” e “Pardo” ( gravada anteriormente por Céu ), bem como as relações Brasil-Portugal que as acompanham, na curiosa estilização de fado que é “Você-você” — faixa com a validação de Carminho , o bandolim fingidor de guitarra portuguesa de Hamilton de Holanda e a ideia, na letra, de uma Americáfrica “entre miséria e mágica”.

Que “Meu coco” termine com a única canção que Caetano não compôs nos últimos meses (“Noite de cristal”, gravada pela irmã Maria Bethânia em 1988 e resgatada por ele ano passado em sua live de Natal ) nem chega a ser ruptura. É coisa de um disco feito sem amarras, que sugere incontáveis ligações à medida que nele se avança.

Cotação: Ótimo