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'Querida konbini' é grito silencioso no vazio contemporâneo

Best-seller em seu país, Sayaka Murata faz duro retrato do vazio existencial japonês
Sayaka Murata: autora retrata um Japão sem espaço para pessoas fora da normalidade Foto: Kentaro Takahashi / Divulgação
Sayaka Murata: autora retrata um Japão sem espaço para pessoas fora da normalidade Foto: Kentaro Takahashi / Divulgação

RIO — Autora sensação no Japão, Sayaka Murata não era muito conhecida por aqui. Antes de “Querida konbini”, só havia tido um conto traduzido para o português, o perturbador “Um casamento limpo”, publicado em uma edição da revista “Granta Brasil”, em 2015. Quem leu, porém, dificilmente saiu incólume. Tanto pelo talento narrativo quanto pelo olhar sombrio da escritora. Através da história de um casal que tentava ter filhos sem sexo, Sayaka satirizava a esterilidade da sociedade japonesa, num incômodo retrato sobre o vazio existencial e afetivo contemporâneo.

“Querida konbini” segue a mesma linha, embora num registro menos pesado. Sayaka costuma dizer que nem mesmo seus pais querem ler seus livros, tamanha bizarrice dos fetiches sexuais que descreve. O novo romance, que chegou recentemente ao Brasil, está longe de ser “proibido para menores", mas não deixa de perturbar o leitor. Nesse caso, a provocação não está no excesso de sexo, mas na falta dele.

A protagonista, Keiko, é o que muitos chamam de assexuada. Virgem aos 36 anos, a única coisa que a move é o desejo de manter a ordem na loja de conveniência onde trabalha há quase duas décadas. A personagem quer a todo custo se integrar ao mundo, mas só consegue dentro das funções rígidas e pré-definidas de um emprego considerado menor. Ela ouve que só há dois modelos de “pessoa normal”: quem casa e tem filhos; e quem busca uma carreira ambiciosa demais para se preocupar com isso. Keiko não se encaixa em nenhum, e Sayaka mostra o conflito como uma espécie de desespero silencioso, um grito contido que atravessa toda a narrativa.

Capa de "Querida Konbini" Foto: Reprodução / Internet
Capa de "Querida Konbini" Foto: Reprodução / Internet

Às vezes, a autora sofre ao usar a primeira pessoa, uma escolha perigosa quando se trata de retratar uma personagem perdida com o que acontece à sua volta. Keiko parece autoconsciente demais em alguns momentos, e a narrativa se torna muito explicativa quando poderia trabalhar melhor o understatement . Sayaka, porém, excela ao descrever as sensações de sua protagonista, a maneira como todo seu corpo vai pouco a pouco fundindo com a loja, seus sons, seus produtos, sua lógica ao mesmo tempo maternal e opressora. Por essa relação orgânica, passa toda estranheza e interesse do romance.

Sayaka também tem muito talento para compor personagens secundários. É um desfile de gerentes, funcionários e clientes, figuras tristes que sustentam uma sociedade perversa sem nunca deixar de serem gentis e compreensivos. A autora  Mas nenhum deles é mais memorável do que Shiraha, uma espécie de incel misógino que vive buscando explicações para o seu fracasso fazendo analogias com o período Jomon (a pré-história japonesa), e que acaba entrando num relacionamento de fachada com a protagonista.

“Querida konbini". Autora: Sayaka Murata. Tradução: Rita Kohl. Editora: Estação Liberdade. Páginas: 152. Preço: R$ 39,00. Cotação: Bom.