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Por — São Paulo

No início do século XX, a escritora russa Nadiejda Aleksandróvna Lókhvitskaia (1878-1952) fazia tanto sucesso com seus contos bem-humorados que seu pseudônimo virou marca de perfumes e caramelos: Téffi. Ela abandonara marido e filhas para apostar na carreira de escritora em São Petersburgo e, em seus textos cheios de graça, atentava-se à situação das mulheres e às mudanças sociais. Apoiou a revolução comunista de 1917, mas se arrependeu e exilou-se na França. Duas antologias da autora acabam de ser editadas por aqui: “Lugar nenhum e outros contos” (Kalinka) e “Contos” (Carambaia), que será lançada no dia 23 na Janela Livraria, no Jardim Botânico, com a presença das tradutoras.

Téffi chega ao Brasil acompanhada de um trio de compatriotas: Mikhail Kuzmin (1872-1936), Vladislav Khodassiévitch (1886-1939) e Iuri Tyniánov (1894-1943). Os quatro despontaram na chamada Era de Prata da cultura russa, iniciada na virada do século XX com a emergência dos simbolistas, escritores que se distanciavam do realismo que caracterizou a prosa russa do período anterior (Dostoiévski, Tolstói etc.). Para uns, a Era de Prata se estendeu até a revolução; para outros, resistiu até o final da década de 1920 e incluiu também as vanguardas (como o cubofuturismo de Vladimir Maiakóvski).

Professor da USP e tradutor de “Necrópole”, de Khodassiévitch, Bruno Barreto Gomide explica que, ao contrário de seus antecessores, os autores da Era de Prata “deixaram as discussões ideológicas em segundo plano em favor da pesquisa estética”. Eles também apostaram na narrativa curta, no jogo entre gêneros literários e no humor. E abriram espaço para o erotismo, como atesta o título “Asas”, de Mikhail Kuzmin, romance gay publicado em 1906 que narra a atração do jovem Vánia pelo aristocrata Larion Dmítrievitch Stroop. No posfácio à edição brasileira, o pesquisador Ivan Sokolov afirma que até 1933, quando Stálin criminalizou a homossexualidade, os gays gozavam de mais liberdade na Rússia do que na Europa Ocidental.

Na turbulenta Rússia do início do século passado, ninguém escapava da política. Téffi, porém, era capaz de transitar entre a direita e a esquerda. Em 1913, o czar Nicolau II teria dito que bastava incluir um conto dela para garantir o sucesso de uma antologia. Lênin, líder da revolução bolchevique, chegava a declamar, no palanque, versos do poema “Abelhas”, que descreve o trabalho de costureiras nas fábricas. Ela também dialogava com a literatura russa clássica. No conto “Meu primeiro Tolstói”, recorda, aos 13 anos, uma tentativa de convencer o escritor a alterar o fim de “Guerra e paz”, pois não se conformava com a morte do príncipe Andrei Bolkónski. Para a tradutora Raquel Toledo, esse diálogo ajuda a entender por que sua obra era reconhecida por todo o espectro político.

— Grandes livros do século XIX também foram lidos à direita e à esquerda, como “Pais e filhos”, de Turguêniev. Dos autores clássicos, Téffi herda a habilidade de comentar questões de sua época sem ser panfletária — diz Raquel. — Mesmo no exílio, ela continuou sendo lida na União Soviética porque Stálin queria mostrar às pessoas que ir embora era pior.

Em Paris, Téffi escrevia sobre a “grande tristeza” do exílio. A capital francesa recebeu vários escritores que reprovavam os rumos da revolução, como o poeta Vladislav Khodassiévitch, que também tinha leitores à direita (Vladimir Nabokov, autor de “Lolita”) e à esquerda (Maksím Górki, expoente do realismo socialista). Em “Necrópole”, ele compõe perfis de companheiros da Era de Prata, como os escritores Aleksandr Blok, Sergei Essiénin e Fiódor Sologub.

— Os retratos de Khodassiévitch são obras-primas e exemplificam como a tradição literária russa recupera seus mortos. A ideia de “ressurreição” é muito importante na cultura russa e, em função do exílio pós-revolução, ganha mais camadas de dramaticidade. O objetivo de Khodassiévitch era preservar o que ele considerava a “verdadeira cultura russa” — explica Bruno Barreto Gomide.

No fim dos anos 1920, a efervescência cultural que produziu a Era de Prata e as vanguardas (que também explodiram no cinema, nas artes plásticas, na música e até no balé) foi derrotada pela imposição do realismo socialista.

Para driblar os censores e assegurar seu sustento, escritores transitavam por diferentes áreas, da literatura infantil ao cinema, caso de Iuri Tyniánov, que escrevia roteiros. Em 1928, ele publicou uma novela que ninguém entende como escapou da censura: “O tenente Quetange”, uma crítica corrosiva do autoritarismo.

A novela recorda uma anedota que circulava no tempo do czar Paulo (1754-1801), de cuja sanidade mental sempre se duvidou. Um amanuense se confunde ao redigir a ordem do dia e, em vez de anotar que “a nomeação para tenentes que tange a Stíven, Rybin e Azantchéiev” havido determinada, escreve: “a nomeação para tenentes Quetange, Stíven, Rybin e Azantchéiev foi determinada”. Assinada pelo imperador, a ordem do dia precisava ser cumprida. Temendo a reação do czar, os oficiais agem como se o tenente Quetange de fato existisse: ele é designado para um regimento, acusado de delitos, condenado a chibatadas e à Sibéria e perdoado, mas morre quando o imperador insiste em encontrá-lo.

Nas entrelinhas

Concebido inicialmente como um roteiro, “O tenente Quetange” virou filme em 1934 com trilha sonora de Serguei Prokófiev. Danilo Hora, da Editora 34, explica que, como muitos de seus pares, Tyniánov recorria à “linguagem esópica” para tapear a censura, isto é, falava nas entrelinhas, indiretamente.

— O tom de “O tenente Quetange” é anedótico, não é incendiário. É uma crítica ao autoritarismo que se disfarça de obra histórica — diz ele, que enxerga certa influência cinematográfica na novela. — O livro tem capítulos curtos e um andamento quase em tempo real, como se acompanhássemos a história cena a cena.

Não é de hoje que leitores brasileiros apreciam os russos. No livro “Dostoiévski na rua do Ouvidor” (Edusp), Bruno Barreto Gomide mostra que o país sofre surtos periódicos de “febre de eslavismo” desde os anos 1930. Editores ouvidos pelo GLOBO acreditam que o prestígio de Dostoiévski e Tolstói por aqui tem incentivado leitores a conhecer a literatura russa das primeiras décadas do século XX.

Daniela Mountian tem tanta fé na russofilia brasileira que, em 2007, fundou a editora Kalinka para publicar autores da Era de Prata, como Fiódor Sologub, Daniil Kharms, e Leonid Dobýtchin (inclusive suas obras infantis). Ela diz que já não é incomum “um leitor começar com Dostoiévski e acabar lendo Kharms”.

Em 2024, mais títulos de autores russos do início do século XX chegam às livrarias, como “Os itálicos são meus”, de Nina Berbérova Kalinka (Kalinka), “O riso vermelho” e “O rei fome”, de Leonid Andrêiev (Carambaia), “Petersburgo”, de Andrei Béli, e uma reunião de poemas de Marina Tsvetáeva (Editora 34).

Diretora editorial da Carambaia, Graziella Betting aponta mais uma razão para a proliferação de títulos russos da Era de Prata por aqui: vários deles foram censurados na União Soviética e passaram décadas esquecidos até serem redescobertos nos anos 1990, “dando início a uma onda que continua até hoje”.

“Asas”, de Mikhail Kuzmin, é um bom exemplo: o romance voltou às estantes russas nos anos 1990, em uma coleção chamada “Banquete do sexo: pérolas da literatura íntima”. Segundo Ivan Solokov, o livro de 1906 permitiu ao “leitor do pós-socialismo” descobrir “a possibilidade da literatura erótica” — nada tão diferente do que já havia feito um século atrás.

Serviço:

‘Contos’

Autora: Téffi. Tradução: Raquel Toledo, Letícia Mei e Priscila Marques. Editora: Carambaia. Páginas: 392. Preço: R$ 134,90.

‘Lugar nenhum’

Autora: Nadiedja Téffi. Tradução: Daniela Mountian e Moissei Mountian. Editora: Kalinka. Páginas: 140. Preço: R$ 48.

‘Necrópole’

Autor: Vladislav Khodassiévitch. Tradutor: Bruno Barreto Gomide. Editora: Jabuticaba. Páginas: 272. Preço: R$ 50.

‘O tenente Quetange’

Autor: Iuri Tyniánov. Tradução: Aurora Fornoni Bernardini. Editora: 34. Páginas: 96. Preço: R$ 53.

‘Asas’

Autor: Mikhail Kuzmin. Tradução: Francisco de Araújo. Editora: Carambaia. Páginas: 200. Preço: R$ 110,90.

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