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Novas edições de obras de Vladimir Nabokov trazem romance, críticas e aulas do cultuado russo

Leituras de 'Ada ou ardor', 'Lições de literatura' e 'Lições de literatura russa' são complementares para quem quer entender a profundidade do discurso de um dos mais celebrados autores do século XX
Vladimir Nabokov, 1973 Foto: Leemage via AFP
Vladimir Nabokov, 1973 Foto: Leemage via AFP

Vladimir Nabokov foi um dos escritores mais cultuados do século XX — e continua sendo. Agora mesmo está saindo aqui nova tradução do romance “Ada ou ardor” (1969), além de “Lições de literatura” e “Lições de literatura russa” (ambos de 1983), que apresentam o lado mais professoral do autor de “Lolita” (1955). Com clareza e profundidade, ele esbanja cultura e controvérsias — como sua pinimba com gigantes como Dostoiévski, entre outros. E o melhor: depois das aulas de Nabokov, será difícil reler alguns ídolos literários com a benevolência de sempre

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Baseadas nos cursos que o russo naturalizado americano ministrou nos EUA entre 1941 e 1958, as “Lições” foram publicadas somente após a morte do mestre, em 2 de julho de 1977. Ora informais, ora intrincadas, propõem que a literatura não seja “tragada de um gole só”, mas ingerida aos poucos e após muita reflexão, pois só assim sua beleza será devidamente revelada. Também recomendam aos escritores que jamais abram mão do exercício de liberdade exigido pelo ofício. E o mais importante: a tarefa do escritor não é relatar o real, mas criar uma realidade convincente, coerente, única.

É sob esses critérios que são apresentadas, em “Lições de literatura russa”, obras de Gógol, Turguêniev, Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov e Górki. Lembremos que, nascido em 1899, numa família aristocrática de São Petersburgo, Vladimir Vladimirovich Nabokov partiu para o exílio em 1919, fugindo do terror pós-revolução de 1917. Após um tempo na Inglaterra e na Alemanha, acabou nos EUA, em 1940. Com essa vivência, tinha total intimidade com os temas mais caros aos seus precursores.

As aulas são brilhantes, como na dissecação instigante de “Anna Kariênina” e da genialidade de Tolstói. Gógol, Turguêniev e Tchekhov também são bem cotados. Dá vontade de ler (ou reler) essa turma toda. Mas, para surpresa de meio mundo literário, Dostoiévski fica mal na foto. “Crime e castigo”, por exemplo, seria “verboso, pavorosamente sentimental e mal escrito”. E aí segue ladeira abaixo a extensa espinafração a ele, quase sem elogios.

Complementares

As críticas levantam uma questão: seria o sucesso de Dostoiévski e outros pares um mérito dos escritores ou fruto de leituras distraídas, contrárias ao que “As lições” sugerem? Nabokov tem lá suas respostas. Consideremos que o russo-americano tinha repulsa a platitudes, críticas sociais e pregações religiosas disfarçadas de romances. Afinal, literatura é diferente de panfleto. Pela ótica nabokoviana, Dostoiévski era desses, assim como o “soviético” Górki, que também apanha muito.

Já as “Lições de literatura” analisam Jane Austen, Dickens, Flaubert, Robert Louis Stevenson, Proust, Kafka e Joyce. A estrutura é a mesma do livro coirmão — com destaque para as quase cem páginas sobre James Joyce e seu “Ulysses”, além da atenção especial a Jane Austen e a Marcel Proust.

Um livro complementa o outro, especialmente para quem se interessa por crítica literária. Por mais que os argumentos do mestre sejam pessoais e contestáveis, a “filosofia nabokoviana” é o que sobressai. E ela não é de se jogar fora.

Não menos importante que as “Lições”, mas longe do seu jeitão acadêmico, “Ada ou ardor” é o puro Nabokov romancista, voltando a alguns de seus temas preferidos: relacionamentos e vivências. Assim como o amor francamente pedófilo entre a ninfeta Lolita e o tiozão Humbert Humbert provocou discussões acaloradas na década de 1950, sendo até proibido na França durante um tempo, “Ada ou ardor” torce narizes puritanos ao abordar a paixão de dois primos ao longo de décadas.

A narrativa de Nabokov passeia entre momentos abertamente eróticos, irônicos, filosóficos e o que mais o leitor descobrir. Cabe até ficção científica, num planeta quase igual à Terra, século XIX, com aviões e carros, mas sem telefone ou televisão. Curioso como tudo parece novo, mesmo sendo uma “novela de época”.

Mesmo com tantas tramas paralelas, “Ada ou ardor” é uma grande história de amor, ainda que proibido, mas um amor sem patetices nem sentimentalidades. E isso já valeria a história, que funciona como tributo à memória, às experiências que não morrem, à vida desejada, vivida e eternizada.

Ao fim das três obras, dá para ver que Nabokov seguia suas próprias “Lições”. Em “Ada ou ardor”, não dispensou a liberdade para criar uma realidade convincente, coerente, única.