Cultura

Filhote rejeitado pela mãe inspira romance sobre a vida de ursos-polares durante a Guerra Fria

Japonesa radicada em Berlim, Yoko Tawada diz que papel dos animais muda conforme regime político e afirma que autores russos ensinam como escrever sob governos autoritários
A escritora japonesa radicada em Berlim Yoko Tawada, autora de "Memórias de um urso-polar" (Todavia) Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
A escritora japonesa radicada em Berlim Yoko Tawada, autora de "Memórias de um urso-polar" (Todavia) Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO – Por que uma mãe rejeitaria seu próprio bebê? Um articulista de um jornal alemão tentou responder a essa pergunta quando Knut, um fofíssimo urso-polar nascido em um zoológico berlinense em 2006, foi abandonado pela mãe , Toska. Ele sugeriu que o socialismo havia roubado o instinto materno da ursa-polar. Nascida no Canadá, Toska crescera na Alemanha Oriental, onde trabalhou como dançarina em um circo. A hipótese do articulista divertiu a escritora japonesa Yoko Tawada, que vive na Alemanha desde 1982. Ela se lembra ainda hoje de ter assistido, aos 5 anos, a um urso andar de bicicleta em um circo soviético de passagem por Tóquio. Ainda menina, ela se pergunta se a vida dos bichos era diferente nos países comunistas.

– Nós achamos que capitalismo ou comunismo não importa para os animais, mas, assim como o comportamento humano muda dependendo do regime, o papel desempenhado pelos animais também muda – disse Tawada, que veio ao Brasil lançar o romance “Memórias de um urso-polar” a convite da editora Todavia e da Fundação Japão. – Nos Estados Unidos, a função dos animais é ser “pet”, o cãozinho adorável da família. Na União Soviética, os animais eram representantes do socialismo, de como o regime conseguia controlar até a natureza dos ursos.

“Memórias de um urso-polar” narra as experiências de três gerações de ursos-polares desde os tempos da Guerra Fria, quando os blocos capitalista e comunista disputavam controle dos homens e dos animais, até o abandono de Knut na Berlim reunificada. A primeira parte do livro é narrada pela avó nunca nomeada de Knut. Estrela de um circo soviético, ela inventa de escrever uma autobiografia e acaba precisando se exilar na Alemanha Ocidental e depois no Canadá. As duas partes seguintes descrevem a vida de Toska na Alemanha Oriental e o estrelato midiático de Knut.

Quando a avó ursa se exila em Berlim Ocidental e retoma sua autobiografia, ela se esforça para aprender alemão, mas seus editores insistem que ela escreva suas memórias em sua “língua materna” – embora ela não soubesse ao certo que língua sua mãe falava. Já Tawada, depois de se estabelecer na Alemanha, continuou escrevendo em japonês, sua “língua materna”, mas só conseguiu mencionar sua mãe (e seu pai) em um texto quando adotou o alemão.

– A língua materna é como uma jaula – afirma. – Quando crescemos em uma língua, aprendemos, talvez inconscientemente, o que não pode ser dito e o que deve ser esquecido. Na língua estrangeira, não há nenhum tabu. Podemos falar livremente e sem vergonha de nada.

Para Tawada, um dos méritos da língua alemã é permitir que as mesmas palavras sejam usadas por filósofos como Immanuel Kant e Martin Heidegger em tratados cabeçudos e por crianças nas brincadeiras cotidianas. Essa virtude alemã, explica Tawada, possibilita aos escritores enxertar especulações filosóficas em histórias aparentemente banais.

– Em japonês, há uma linguagem filosófica separada da linguagem cotidiana. Se você usar determinados termos, o leitor vai pensar que você está escrevendo filosofia – diz. – Mas o japonês também me oferece recursos importantes, como a possibilidade de misturar livremente os tempos verbais, confundindo presente e memória. Diferentemente do alemão e do português, em japonês, a palavra para “mão” e “pata” é a mesma, então você não sabe de cara se o meu narrador é um animal ou uma pessoa.

A capa do livro de Yoko Tawada; a autora escreveu em japonês e traduziu ela mesma para o alemão Foto: Reprodução
A capa do livro de Yoko Tawada; a autora escreveu em japonês e traduziu ela mesma para o alemão Foto: Reprodução

Tawada escreveu “Memórias de um urso-polar” primeiro em japonês e depois ela própria traduziu o livro para o alemão. No Ocidente, os livros de Tawada costumam ser traduzidos do alemão; no Oriente, do japonês. Mas há exceções:

– Na Coreia, onde a literatura japonesa é muito popular, traduziram o alemão, porque o que eu escrevo parece mais literatura alemã do que japonesa para eles. Na Rússia, traduziram “Memórias...” do japonês, mas o livro nunca saiu lá. Eu me pergunto por quê. Talvez não tenham gostado do que escrevi sobre a URSS. Mas os ucranianos, sim, gostaram (risos) .

Em “Memórias”, há uma piscadela para Tolstói: “Os casamentos dos pinguins são todos iguais, mas cada casamento entre ursos-polares é diferente”, diz a avó ursa, adaptando a primeira frase de “Anna Kariênina”. Tawada aprendeu russo, mas esqueceu. Ela viajou oito vezes para a Rússia nos tempos da URSS. Adolescente, viciou-se em Dostoiévski, que ela acusa de “narcisista e pouco empático”. Os autores russos, insiste Tawada, têm lições importantes a nos ensinar.

– É importante aprender a sobreviver sob uma ditadura e isso os autores russos podem nos ensinar. Eles aprenderam a escrever em código, a criar metáforas. Antes de começar a escrever, todo escritor devia estudar como escrever debaixo de uma ditatura. Um regime autoritário pode muito bem se instalar no Japão ou na Europa Ocidental – diz. – Quando eu cheguei, a Alemanha Ocidental era uma sociedade livre e democrática. Hoje, a cada vez mais jovens de extrema-direita que odeiam a liberdade, que não são felizes na democracia. Por que será que algumas pessoas amam as ditaduras? Talvez elas preferiam ser adestradas como os ursos-polares no circo.

Nesta quinta-feira (17), às 19h, Tawada conversa com o jornalista Roberto Kaz, autor de “O livro dos bichos” (Companhia das Letras), na Livraria da Travessa de Ipanema.

“Memórias de um urso-polar” Autora: Yoko Tawada Tradutores: Lúcia Collischonn de Abreu e Gerson Roberto Neumann Editora: Todavia Páginas: 272 Preço: R$ 64,90