As luzes já estão apagadas e a orquestra o maestro já estão a apostos quando uma mulher enfeitada com um boá de plumas vermelhas sobe no palco do Theatro Municipal de São Paulo e se apresenta: “Sou Betania Santos. Vim do Maranhão. Estou em Campinas. Sou mãe. Sou guerreira. Sou prostituta ”. É assim que começa “María de Buenos Aires”, ópera-tango do argentino Astor Piazzolla (1921-1992) que estreia nesta sexta-feira (10) como um dos eventos programados para os 110 anos do teatro, a serem completados no domingo (12).
Dirigido pelo cineasta Kiko Goifman , o espetáculo narra a trajetória de María, prostituta-cantora, “nascida em um dia em que deus estava bêbado e de mau humor”, que continua a vagar pelos arrabaldes de Buenos Aires mesmo depois de morta.
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A soprano colombiana Catalina Cuervo, intérprete da protagonista, divide o palco com quatro prostitutas do Coletivo Puta Davida, organização não governamental que luta pelos direitos das trabalhadoras sexuais cujo braço mais famoso é a grife Daspu. Além de Betania, integram o elenco Elaine Bortolanza e as travestis Lua Negra e Dannyele Cavalcante. O texto de Betania que abre o espetáculo é improvisado e pode variar de uma récita para a outra, mas o objetivo é sempre o mesmo.
— Queremos mostrar aos intelectuais, às pessoas cultas que frequentam o Theatro Municipal, que nós somos as coitadinhas que eles imaginam. Não somos vítimas da prostituição . Somos uma categoria de trabalhadoras — diz Betania, presidente da Associação Mulheres Guerreiras: Profissionais do Sexo Unidas pelo Respeito. — Quando subo no palco para abrir o espetáculo, ocupo um lugar de é fala que é meu. São sou uma atriz interpretando uma prostituta. Sou uma prostituta.
“María de Buenos Aires” foi encenada pela primeira vez em 1968. A montagem paulistana é a primeira a escalar prostitutas reais. A parceira com a Daspu foi ideia do cineasta Kiko Goifman, diretor do espetáculo, que faz sua estreia na ópera.
![A soprano colombiana Catalina Cuervas na ópera "María de Buenos Aires" Foto: Stig Lavor / Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/25191191-639-cce/FT1086A/Mara-de-Buenos-Aires_TMSP-por-Stig-Lavor-4V5A2661STIG.jpg)
Arte e política
Diretor de filmes como “Bixa Travesty” , documentário sobre a funkeira Linn da Quedrada , e “A destruição de Bernardet" , Goifman já havia colaborado em outros projetos artísticos da Daspu, como um desfile em 2015.
— Piazzola apresenta personagens marginais, desviantes, no melhor sentido da palavra. Por eu também me interessar por tabus, me senti à vontade para fazer essa ópera — conta Goifman. — A primeira parceria que firmamos foi com a Daspu, que eu conheço e admiro. É uma parceria artística e também política. Prostitutas também podem criar e ser remuneradas por isso.
Diretora da Daspu, Elaine Bortolanza lembra que o Coletivo Puta Davida já “transa” com o teatro há tempos. O primeiro protesto público das trabalhadoras sexuais organizadas, contra a repressão policial, ocorreu, ainda nos anos 1970, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, sob a liderança de Gabriela Leite (1951-2013), fundadora do Davida. Segundo Elaine, elas só toparam participar da “María de Buenos Aires” porque a ópera não propaga estereótipos relacionados ao meretrício nem mostra as prostitutas como vítimas.
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Kiko Goifman trouxe sua experiência cinematográfica para a ópera. No fundo do palco, um telão projeta vídeos nas madrugadas de São Paulo e Buenos Aires e imagens dos atores em ação, capturadas na hora por câmeras acima do palco. Durante os ensaios do espetáculo, Goifman teve Covid e precisou ser internado. Passou oito dias na UTI, mas não precisou ser intubado.
— Como eu não podia ir ao teatro, o Ronaldo Zero, diretor de cena, chegava lá todos os dias de manhã, passava para os músicos e o elenco tudo o que tínhamos pensado e conferiria se funcionava ou não — diz Goifman. — Os enfermeiros até riam ao me ver dirigindo uma ópera da UTI. Não recomendo, mas me ajudou a me sentir vivo.
“María de Buenos Aires” foi adaptada aos protocolos sanitários. O elenco conta com apenas 16 pessoas: dois solistas (a soprano e o barítono), um narrador, três bailarinos, um coro com seis participantes e as quatro prostitutas. Os atores só tiram a máscara quando estão sozinhos no palco. Os bailarinos dançam tango sem se tocar. A orquestra de 11 músicos não ocupa o fosso do teatro, pouco ventilado, mas o canto direito do palco.
Outras comemorações
Um decreto da Prefeitura de São Paulo permite que espaços culturais operem com 100% de sua capacidade, desde que seja respeitado o distanciamento social de 1,5 metro. Por isso, o Municipal pretende preencher, no máximo, 40% da plateia. Todos os espectadores precisarão usar máscaras, exceto de pano, que estão vetadas.
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Além da ópera, o aniversário do teatro também será comemorado com outras ações. Quem quiser aproveitar para conhecer o saguão, a escadaria, o Salão Nobre, camarotes, palco, coxias e a área técnica, pode visitar a instalação-percurso “Fantasmagoria”, assinada pela cineasta Daniela Thomas e pelo dramaturgo Felipe Hirsch.
As celebrações, porém, não devem se encerrar no teatro. Ainda este mês, o “Cine-ópera” vai projetar árias de espetáculos que já passaram pelo teatro em espaços culturais da periferia paulistana. Na segunda-feira (13), começa a circular, pelo Centro de São Paulo, a primeira carroça lírica. Em parceria com o movimento Pimp My Carroça, o Municipal equipou os carrinhos de catadores de material reciclado com caixas de som que vão tocar ópera por onde eles passarem.