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Cultura

Travis Alabanza: 'Por que nós, transexuais, não somos tratadas como vítimas nem quando atacadas?'

Dramaturga britânica apresenta, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, espetáculo baseado em ataque transfóbico sofrido em Londres
Dramaturga e atriz britânica Travis Alabanza em cena no espetáculo "Burguez" Foto: Dorothea Tuch / Divulgação
Dramaturga e atriz britânica Travis Alabanza em cena no espetáculo "Burguez" Foto: Dorothea Tuch / Divulgação

SÃO PAULO — A atriz e dramaturga transexual britânica Travis Alabanza não gosta de plateias silenciosas.

— Nas ruas, nós, pessoas trans, temos que andar de cabeça baixa, sem ocupar muito espaço. Quero que o teatro seja um lugar onde possamos rir, gritar e chorar espalhafatosamente — disse Alabanza ao GLOBO, à beira da piscina de um hotel paulistano. — Não gosto de plateias muito quietas, mas acho que isso não é um problema no Brasil.

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Hoje e também no sábado (14) e no domingo (15), Alabanza apresenta a peça “Burguez” na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). No palco, ela recorda um ataque transfóbico que sofreu em 2016, quando caminhava pela Ponte de Waterloo, em Londres, na hora do almoço, e um homem branco jogou nela um hambúrguer e gritou “traveco!”. Ninguém perguntou a Alabanza se ela estava bem ou se precisava de ajuda.

— Em 2016 eu era mais aventureira: saía por aí de vestido, salto alto e peruca sem medo. Depois, fiz ajustes no meu vestuário por segurança — disse Alabanza, que durante a entrevista vestia uma calça verde, uma discreta camiseta cinza sem mangas, botas pretas e uma argola amarela na orelha. — Já tinha sido xingada, ameaçada com uma faca, mas ser atingida por aquele hambúrguer foi pior. E o fato de ninguém ter feito nada foi ainda mais desumano. Por que nós, transexuais, não somos tratadas como vítimas nem quando somos atacadas? Por que sempre precisamos nos defender sozinhas?

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Dramatugue britânique

“Burguez” estreou nos palcos londrinos em 2018. Circulou pelo Reino Unido e também foi encenado em Dublin, na Irlanda, e em Berlim, na Alemanha. Depois de São Paulo, Alabanza vai apresentar a peça na Finlândia e na Holanda.

Nascida em 1996, em Bristol, Alabanza se define como uma pessoa não binária, ou seja, não se identifica nem com o gênero masculino nem com o feminino. Em inglês, ela prefere ser tratada por pronomes neutros, como “they”, que significa “eles” ou “elas”, mas foi apropriado pela comunidade transexual como um pronome neutro, nem masculino, nem feminino. A MITsp sugeriu à reportagem tratar Alabanza por “ile”, o equivalente de “they” em português, a usar substantivos e adjetivos neutros terminados em “e” e compartilhou uma lista com exemplos: “autore”, “ume”, “le artiste”. Para facilitar a compreensão do leitor, Alabanza concordou em ser tratada no feminino neste texto. Para ela, antes dos pronomes importa discutir a violência cotidiana sofrida por pessoas transexuais e não binárias.

— A linguagem é importante, mas se a discussão começar aí, não vamos falar do que realmente afeta nossas vidas. Moro com outras três pessoas trans e não conversamos sobre as palavras que usamos para nos descrever, mas sobre encontrar um amor, um emprego, não ser maltratada no comércio — afirma. — Falar só sobre pronomes às vezes exclui pessoas trans mais velhas, que não têm acesso às discussões virtuais, não têm diploma universitário ou não querem teorizar sobre si mesmas. Não é por causa de pronomes que nós apanhamos nas ruas.

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Gênero e raça

Alabanza diz que aprendeu a atuar na escola — porque precisava esconder sua feminilidade para não ser alvo da zombaria e da violência dos meninos, e também porque foi lá que subiu ao palco pela primeira vez. Aos 14 anos, resolveu participar de uma peça com príncipe, bruxa e fada madrinha a ser apresentada no fim do período letivo. Alabanza pôde interpretar a bruxa porque uma amiga sua desistiu do papel.

— Lá estava eu no palco, de vestido e peruca, pensando que todos iam zombar de mim. E zombaram mesmo, mas depois passaram a me respeitar. Descobri que a feminilidade era punida nos corredores da escola, mas, no palco, me dava poder. Fiquei viciada neste poder.

A dramaturga e atriz britânica Travis Alabanza em cena no espetáculo "Burguez" Foto: Dorothea Tuch / Divulgação
A dramaturga e atriz britânica Travis Alabanza em cena no espetáculo "Burguez" Foto: Dorothea Tuch / Divulgação

Alabanza costuma escrever suas próprias peças porque há poucas oportunidades para transexuais no teatro. No entanto, já encarou papéis que, tradicionalmente, iam para atores cisgênero. Em 2017, interpretou Amyl no espetáculo “Jubilee”, inspirado em “Magicídio”, filme cult de 1978 que imagina uma visita da Rainha Elizabeth I (1533-1603) à Londres punk rock dos anos 1970. No filme, Amyl é uma mulher branca e cis. Alguns f��s do filme se incomodaram de ver a personagem transformada em uma negra não binária no palco.

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Criada em uma vizinhança majoritariamente negra, Alabanza tangencia conflitos raciais em “Burguez”. Sempre chama um homem da plateia para ajudá-la a preparar um hambúrguer enquanto narra o ataque da Ponte de Waterloo.

— Falar sobre branquitude deixa todo mundo desconfortável, especialmente o público branco e de classe média que frequenta teatros no Reino Unido. Gosto de vê-los se contorcendo na plateia.

Serviço

"Burguez" (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo)
Onde:
Centro Cultural São Paulo (Av. Vergueiro, 1.000)
Quando:
13, 14 e 15/3, às 19h
Quanto:
de R$ 20 a R$ 40