Brasil Direitos Humanos

Campos de concentração cearenses em 1932 tiveram como base teorias racistas contra sertanejos, diz pesquisadora

Sete barreiras sanitárias erguidas com o dinheiro federal não era humanista, mas preconceituosa, afirma Kênia Rios, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará
Imagens extraídas de uma obra rara que integra o acervo do Arquivo Nacional, intitulada "O secular problema do Nordeste", de autoria de Ildefonso Albano, em 1917 Foto: Reprodução / Agência O Globo
Imagens extraídas de uma obra rara que integra o acervo do Arquivo Nacional, intitulada "O secular problema do Nordeste", de autoria de Ildefonso Albano, em 1917 Foto: Reprodução / Agência O Globo

RIO - Guardado nos depósitos do Arquivo Nacional, no Rio, um telegrama assinado pelo interventor federal do Ceará, capitão Carneiro de Mendonça, em 1931, é o começo de um dos mais sombrios capítulos da história republicana do Brasil. Ao pedir dinheiro a Getúlio Vargas por não se julgar “no direito de cruzar os braços, abandonando o povo por cujo bem-estar e interesses sou responsável”, o oficial converte em política pública as teorias racistas que circulavam pelo país sobre a condição do sertanejo de raça inferior e bárbara

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Com a ajuda do governo central, foram erguidos no ano seguinte sete campos de concentração no Estado como barreira oficial para evitar que os retirantes invadissem as cidades.

A professora Kênia Rios, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), sustenta que a construção dos sete campos de concentração representou o apogeu das teses difundidas abertamente no Brasil nos anos 1930, especialmente a obra do médico legista Nina Rodrigues, de que as pessoas eram definidas pelas suas características físicas e biológicas e por sua relação com os fenômenos climáticos.

Nina Rodrigues era a referência da época da ideia de que o grande problema do país era a miscigenação. Na hierarquia das raças definida por esses teóricos, coube aos refugiados das secas o papel dos homens e mulheres incivilizados e deveriam ser controlados.

Para Kênia Rios, as teses oferecem a base ideológica para as barreiras sanitárias erguidas com dinheiro federal em 1932. Eram chamadas publicamente de campos de concentração em tempos que precederam a 2ª Guerra Mundial e os horrores do Holocausto.

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— O pretexto era, como se repetiria ao longo da história, socorrer o povo flagelado. Na prática, os campos de concentração do Ceará representavam a necropolítica. Com uma alta concentração de pessoas fragilizadas, eram um alvo fácil para epidemias como a do cólera, além de servir de cenário para conflitos internos, que muitas vezes terminavam em morte, frente à alimentação diminuta — lamenta a pesquisadora.

Campos da discriminação

Autora do livro “Isolamento e Poder: Fortaleza e os Campos de Concentração na seca de 1932” (Imprensa Universitária, 2014), Kênia está acabando de escrever capítulo de um trabalho sobre história ambiental no Brasil, pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), em que associará os campos de concentração à ciência racista no país. Para ela, havia na época uma ideia generalizada de que os retirantes precisavam ser disciplinados. Caso contrário, invadiriam as cidades, como hordas de zumbis, saqueando e atacando a população.

Parte da memória sobre os campos cearenses está guardada nas seções do Gabinete Civil da Presidência da República e de Obras Raras do Arquivo Nacional. Uma dos mais importantes é a troca de telegramas entre o interventor do Ceará, capitão Mendonça, e o Ministério da Viação e Obras Públicas, na época chefiado por José Américo de Almeida. O oficial, que começa a pedir ajuda no final de 1931, está assustado com a ausência de inverno no Ceará e a inevitável marcha dos retirantes em direção às cidades.

“Situação estadual face às secas tem-se agravado dia a dia, estando seu governo a braços de horrível situação; cresce a vinda à capital de povo assolado pela fome”, alerta o oficial.

O ciclo da seca, seguida de grandes retiradas do semiárido, era um fenômeno já conhecido pelos nordestinos desde o final do século XIX. Os deslocamentos aconteciam a reboque da crise na produção de algodão, que entrou em declínio na década de 1870.

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Na obra-prima “O Quinze”, Rachel de Queiroz revelou em ficção a diáspora dos sertanejos cearenses durante o período das secas e detalhou o seu confinamento em campos de concentração. Um dos mais emblemáticos da época era o campo do Alagadiço, erigido nas proximidades de Fortaleza.

Kênia disse que nada foi mais emblemático, contudo, do que os campos de 1932: Buriti, em Crato, Patu, em Senador Pompeu, Ipú — mesmo nome da cidade onde ficava, assim como Quixeramobim, Cariús, em São Mateus, e Urubu e Otávio Bonfim, em Fortaleza.

Argumento humanista

A pesquisadora afirma que os jornais locais, em consonância com a sociedade, defendiam a necessidade de deter os retirantes que, curiosamente, usavam as mesmas linhas férreas construídas para escoar o algodão do sertão para se deslocar rumo aos grandes centros.

— As elites locais construíram um argumento humanista para justificar os campos. Havia um pavor generalizado do risco de invasões, saques, ataques, violência. Porém, as pessoas alegavam que, juntando todo mundo no mesmo espaço, ficava mais fácil dar socorro. Na vida real, nada disso ocorria. As condições eram terríveis. Concentrações como a do Crato, com capacidade máxima para 2 mil pessoas, chegaram a reunir 60 mil — lamenta a historiadora.

Por mais que a produção acadêmica sobre o assunto tenha crescido e parcelas da sociedade clamem pela memória e tombamento desses espaços (praticamente não há construções ainda de pé), como ocorre com as ruínas do campo de Senador Pompeu, Kênia Rios diz que a pesquisa ainda deve mais conhecimento sobre esse período, que a professora também entende como um dos marcos fundadores da indústria da seca:

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— Por que se fala tão pouco sobre os campos de concentração para os pobres brasileiros? Porque foram feitos para os pobres, que cruzaram décadas sem espaço para se manifestar. E vale lembrar também que tudo isso ocorreu num momento em que o governo Vargas não escondia o flerte com o nazismo— diz a pesquisadora.

Embora Vargas tenha terminado nos braços aliados, enviando os pracinhas para a segunda grande guerra, as teorias raciais que o aproximaram do nazismo fundaram raízes no Nordeste dos anos 1930. E que cresceram nos anos que se seguiram.