Segredos do crime
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Segredos do crime

Histórias policiais, investigações e bastidores dos crimes

Informações da coluna

Vera Araújo

Jornalista investigativa há 30 anos e autora de "Mataram Marielle" e "O Plano Flordelis: Bíblia, Filhos e Sangue". Passou por "Jornal do Brasil" e "O Dia"

O hábito de ouvir o noticiário carioca no velho rádio de pilha nunca foi abandonado pelo comissário de Polícia Civil Jamil Warwar, de 87 anos. Graças a informações de ouvintes, que ligavam para os programas policiais, o investigador conseguiu algumas pistas para elucidar homicídios nos quais trabalhou. O serviço funcionava como uma espécie de ancestral do Disque Denúncia. Após mais de quatro décadas na polícia, Warwar se recorda que veio de uma ligação para a Rádio Globo a placa do carro usado pelos assassinos de Cláudia Lessin Rodrigues, de 21 anos. O caso é o primeiro da trilogia Agente Elementar, de histórias que parecem saídas dos romances policiais, mas aconteceram de verdade. O GLOBO começa a publicar a série hoje, e continua nos próximos dois domingos.

O corpo da jovem foi encontrado nu, com um arame fino perpassando o pescoço e os seios, no dia 25 de julho de 1977. Ela estava amarrada a uma bolsa de marca italiana famosa à época, com três pedras, pesando cerca de 20 quilos. Cláudia havia sido lançada de um penhasco da Avenida Niemeyer, em São Conrado, próximo ao local conhecido como Chapéu dos Pescadores. De longe, numa lancha, uma dupla de salva-vidas a viu e acionou a polícia.

Jamil Warwar: investigador revela como desvendou o Caso Cláudia Lessin

Jamil Warwar: investigador revela como desvendou o Caso Cláudia Lessin

Apaixonado por investigar casos intrincados de homicídios, Warwar, ao saber da notícia da descoberta do corpo, entrou num carro da polícia com seu assistente e, de sirene ligada, chegou em 25 minutos à cena do crime. A Delegacia de Homicídios ficava na Avenida Presidente Vargas, no Centro.

Como em filmes americanos, o investigador conta que ainda pegou os bombeiros içando o corpo de Cláudia, com a perícia já em andamento, tentando encontrar algum vestígio que levasse aos assassinos. Warwar lembra que havia indícios de que a vítima sofrera violência sexual.

À época, o inspetor tinha12 anos na Polícia Civil, onde aprendeu a usar a lógica como base da investigação, mas sem desprezar seus instintos. Naquele momento, havia uma mulher morta, vítima de violência de gênero, um feminicídio, crime só tipificado por lei em 2015. O homicídio ocorreu quase sete meses depois de outro rumoroso crime contra a mulher: a morte da socialite mineira Ângela Diniz, baleada pelo marido, o empresário Raul “Doca” Fernandes do Amaral Street, em Búzios.

Como foi encontrada apenas com um cordão de ouro no pescoço e alguns anéis nos dedos, sem documentos, a mulher foi identificada logo depois pelos exames datiloscópicos. Enquanto esperava o resultado das perícias de local e necropsia, o inspetor interrogou a família da vítima e tentou, como de praxe, reconstituir os últimos passos de Cláudia.

Placa foi primeira pista

Com a repercussão do assassinato, o operário Luís Gonzaga de Oliveira, que morava num barracão numa obra próxima, se lembrou de um detalhe. Na madrugada do crime, insone por conta de uma dor de dente, ouviu vozes do lado de fora. Intrigado, ele saiu para dar uma espiada e, por uma fresta, viu uma Brasília, veículo da Volkswagen, de cor “marrom avermelhada”. Sem lápis ou caneta à mão, pegou uma pedra e rabiscou numa mureta o número da placa, SX-5904. Ao saber do caso, ligou para a rádio dando a pista pela qual o investigador puxaria o fio da meada.

Cláudia Lessin, violentada e morta aos 21 anos de idade, em 1977 — Foto: Arquivo de família
Cláudia Lessin, violentada e morta aos 21 anos de idade, em 1977 — Foto: Arquivo de família

Com a placa, Warwar descobriu que o carro era de Michel Albert Frank, 26 anos, dono de uma imobiliária em Ipanema e filho do sócio majoritário da fábrica de relógios Mondaine. O enredo começava a se desenrolar.

— Dias antes do crime, Cláudia tinha ido ao lançamento do filme “Gente fina é outra coisa”, no qual a irmã dela, Márcia Rodrigues, atuava como atriz. Cláudia tinha um romance com Pedro Rovái, o diretor do filme. O evento foi no Hotel Copacabana Palace. Michel estava lá e se interessou por ela. Ele era filho de Egon Frank, um dos homens mais ricos do Brasil. Ele financiava os filmes produzidas por Rovái — conta Warwar.

Michel Frank: principal suspeito do assassinato de Cláudia Lessin — Foto: Reprodução
Michel Frank: principal suspeito do assassinato de Cláudia Lessin — Foto: Reprodução

Segundo o investigador, ficou nítida a dependência econômica de Rovái em relação ao pai de Michel:

— Como havia um desejo de Michel por Cláudia, e Rovái dependia financeiramente do pai dele, os dois combinaram um encontro do herdeiro da Mondaine com ela. Rovái chamou Cláudia para que fossem juntos a uma festa de Michel, no Leblon. O cineasta pediu que ela fosse antes dele, mas não apareceu. Rovái jogou Cláudia nos braços de Michel — relembra.

Georges Kours: cabeleireiro suspeito do assassinato de Cláudia Lessin — Foto: Manoel Soares/Agência O GLOBO
Georges Kours: cabeleireiro suspeito do assassinato de Cláudia Lessin — Foto: Manoel Soares/Agência O GLOBO

Cláudia foi ao apartamento de Michel, onde também estava o cabeleireiro libanês Georges Kour, 35 anos, que trabalhava no salão do antigo Hotel Méridien, no Leme. Segundo Warwar, Michel era traficante de drogas. A jovem ficou lá esperando Rovái até que dormiu, de acordo com as investigações. No dia seguinte, a pretexto de Kour levá-los à Niemeyer para mostrar onde pescava, aconteceu o crime. Michel teria prometido deixar a jovem em casa, após o suposto passeio.

— Mas não foi o que aconteceu. Michel tentou violentá-la. Ela reagiu. Kour a segurou por trás. Como sei disso? Michel estava com o peito e pescoço arranhados, enquanto o cabeleireiro, não. As provas técnicas da perícia foram cruciais. Michel apertou de tal maneira o pescoço de Cláudia, que havia marcas dos polegares dele. Ela caiu morta. Ele ainda a violentou mesmo assim— diz Warwar, que ainda percebeu, na casa de Michel, um jogo de malas idênticas à usada para pôr as pedras e afundar o corpo de Cláudia, que acabou ficando preso no costão da Niemeyer.

O inspetor Jamil Warwar durante as investigações do Caso Cláudia Lessin — Foto: Alberto Jacob/Agência Globo
O inspetor Jamil Warwar durante as investigações do Caso Cláudia Lessin — Foto: Alberto Jacob/Agência Globo

Michel fugiu para Suíça

Warwar lembra que tanto Michel quanto Kour chegaram a negar o crime e mudaram de versão diversas vezes. O advogado de Kour era pago pela família de Michel e, segundo o inspetor, houve obstrução à investigação, com falsos testemunhos. Até tentaram afastá-lo do caso, mas ele retornou.

Outra testemunha importante foi o pescador Jander Lopes de Faria. Ele ligou para a redação do GLOBO e revelou ter visto Michel, Kour e Cláudia no Chapéu dos Pescadores. Faria pescava a 150 metros do local. Ele descreveu a jovem e as roupas que ela usava na festa.

Bombeiros resgatam corpo de Cláudia Lessin do Costão da Avenida Niemeyer, em São Conrado — Foto: Otávio Magalhães/Agência Globo
Bombeiros resgatam corpo de Cláudia Lessin do Costão da Avenida Niemeyer, em São Conrado — Foto: Otávio Magalhães/Agência Globo

Kour foi absolvido pelo homicídio e pela violência sexual, mas condenado a dois anos de prisão por ocultação de cadáver. Como já estava preso havia três anos, foi solto. Já Michel, por ter cidadania Suíça, fugiu para lá. Chegou a responder pelo crime na Suíça, mas foi condenado apenas a dois meses pelo uso de drogas. Em 1982, ele foi morto a tiros após brigar com um casal, que estava em seu apartamento consumindo drogas.

— Modéstia à parte, se não sou eu, o caso não seria elucidado. Inocentes poderiam ser apontados como criminosos, por causa do dinheiro, do poderio econômico da família de Michel. Ainda tentaram desonrar a jovem depois de morta. Disseram que ela se drogava. O laudo dos peritos deu negativo para álcool e drogas. Queriam colocar a culpa na vítima — diz Warwar, que, até hoje, não larga o rádio nem na hora de dormir.

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