Malu Gaspar
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Malu Gaspar

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Informações da coluna

Por Malu Gaspar

Documentos que constam da investigação interna em curso na Americanas mostram que o comitê de auditoria questionou os diretores em pelo menos quatro ocasiões sobre as operações que geraram o rombo contábil na empresa, mas em todas elas a resposta foi que essas operações simplesmente não existiam.

O comitê de auditoria, formado por três conselheiros, era uma das instâncias pelas quais o balanço da empresa tinha que passar antes de ser aprovado pelo conselho de administração e apresentado ao mercado.

A descoberta desses registros internos, aos quais a coluna teve acesso com exclusividade, pode mudar o rumo das investigações sobre a fraude na varejista.

O material mostra que, em agosto de 2020, maio de 2021, agosto de 2021 e novembro de 2022, os executivos da área disseram ao comitê de auditoria que a empresa não tinha nenhuma operação de “risco sacado”.

O “risco sacado” é um mecanismo pelo qual os bancos abrem linhas de crédito para que os fornecedores descontem suas faturas com desconto, e depois cobram o valor da Americanas. É um tipo de financiamento comum no varejo.

A regra é que o volume de empréstimos feitos nessa modalidade apareça no balanço da companhia como passivo (ou dívidas). Mas hoje se sabe que essas dívidas, que somavam R$ 20 bilhões em janeiro, não apareciam nas demonstrações financeiras pelo menos desde 2016. No total, a Americanas tem mais de R$ 43 bilhões em dívidas a descoberto.

A fraude maquiava o tamanho do passivo da varejista, fazendo com que parecesse financeiramente mais saudável do que na verdade era. Com o lucro anabolizado, também era possível distribuir mais dividendos aos acionistas e bônus aos executivos.

Depois que o novo CEO, Sérgio Rial, admitiu publicamente ter encontrado essas “inconsistências contábeis” no balanço, a Americanas pediu recuperação judicial, a diretoria foi demitida, Rial se afastou, e os bancos credores passaram a acusar seus acionistas principais — o trio de bilionários Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles — de serem os responsáveis pelo que chamaram de “a maior fraude corporativa da história do Brasil”.

O trio se defendeu, em nota, afirmando que jamais teve conhecimento de "manobras ou dissimulações contábeis na companhia".

A versão não convenceu o mercado, já que os bilionários são conhecidos por participar ativamente da gestão das empresas em que investem. Era o caso de Beto Sicupira, a quem cabia acompanhar o cotidiano da Americanas, o que ele fazia de perto.

É por isso que esses registros podem mudar o rumo do caso, quando forem apresentados à Justiça ou à Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, que regula o mercado de capitais.

Pela governança da companhia, a cada trimestre as demonstrações financeiras eram enviadas por e-mail aos conselheiros membros do comitê de auditoria – que segundo registros da CVM, na época eram Mauro Muratorio, Vanessa Lopes e Sidney Breyer.

A partir daí, eles faziam uma série de questionamentos padrão, entre os quais esse do risco sacado.

Depois, os executivos da área financeira da empresa apresentavam as respostas numa reunião, expondo slides que eram debatidos pelo grupo.

Além dos três membros do comitê de auditoria, participavam das reuniões executivos ligados à área financeira.

Uma vez esclarecidas as dúvidas, o comitê fazia recomendações de mudanças, que eram incorporadas na versão final do balanço submetida ao conselho. Como os executivos diziam que não havia informação sobre o risco sacado, esses documentos podem ajudar a demonstrar a tese dos acionistas e conselheiros de que não sabiam da fraude.

Os registros da comunicação entre comitê e diretoria mostram que, em agosto de 2020, o comitê de auditoria perguntou à diretoria da Americanas: “Utilizamos a prática de fornecedor condicionado (outro nome para o “risco sacado”)? ” A resposta foi: “Não utilizamos”.

Na reunião presencial que aconteceu logo a seguir, segundo os relatos colhidos pela investigação interna da companhia, os executivos ainda teriam dito que os fornecedores não pediam esse tipo de crédito, e por isso não havia nenhum registro na linha de “contas a pagar”.

Depois, em maio de 2021, o comitê de auditoria novamente perguntou: “Temos operações de forfait/convênio (mais um sinônimo para o risco sacado) com nossos fornecedores? Se sim, qual o valor? E complementou: “Como nosso prazo médio de pagamento está evoluindo de dezembro de 2019 até hoje?”

A resposta: “Não temos este tipo de transação na companhia. O prazo médio de pagamento está em linha desde dezembro de 2019 até março de 2021 (159 dias x 158 dias, respectivamente)”.

Meses depois, em agosto de 2021, o tema novamente foi abordado pelo comitê. Desta vez, a pergunta foi: "Em qual conta visualizamos os valores a pagar e a receber dos sellers (vendedores)? Os valores ficam líquidos na linha de Fornecedores? Poderiam comentar um pouco? Temos contas transitórias para essa relação com pendências antigas?"

A resposta, de novo, foi de que não havia esse tipo de pendência: "Não temos conta transitória de fornecedores".

A última vez em que o risco sacado foi pauta das reuniões pré-balanço foi em novembro de 2022. Na ocasião, o comitê perguntou: “Continuamos sem nenhuma transação de forfait/convênio junto aos fornecedores, correto?” Os diretores responderam: “Continuamos sem nenhuma transação de forfait/convênio junto aos fornecedores”.

Esses documentos são parte de todo o material que está sendo esquadrinhado pela própria direção da Americanas, pelo comitê independente de apuração e pela própria CVM - além de bancos credores que obtiveram na Justiça a quebra de sigilo dos emails da companhia.

É cedo para dizer que esses são os únicos documentos internos que tratam da questão do risco sacado. Muita coisa ainda deve vir à tona. Mas já deu para ver que a história ainda terá muitas reviravoltas até ganhar uma versão definitiva.

Atualização às 13h17m de 02/03: Por um lapso, o nome do executivo Sérgio Breyer foi inserido no texto. O nome correto do executivo que fez parte do comitê de auditoria da empresa é Sidney Breyer e não Sérgio. Pedimos desculpas pelo erro.

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