Blog do Acervo
PUBLICIDADE
Blog do Acervo

O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Por

RESUMO

Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você

GERADO EM: 18/06/2024 - 06:00

Batalha pela legalização do aborto em SP

Família luta por aborto legal para menina grávida após estupro, enfrentando resistência da comunidade e líderes religiosos. Após longa batalha, gestação é interrompida em São Paulo.

A família de uma criança de 10 anos, moradora de Israelândia, no interior de Goiás, só descobriu que a menina estava grávida quando ela desmaiou e foi levada para o hospital, onde exames evidenciaram a gestação em curso. Filha de um lavrador, a menor de idade vinha sendo estuprada desde os 7 anos de idae por dois vizinhos, um de 65 anos e outro de 52. Os pais dela ficaram consternados ao desobrir tudo aquilo. Imediatamente, eles denunciaram os criminosos na delegacia e decidiram submeter a vítima a um aborto legal o mais cedo possível. Mas não seria nada fácil.

O episódio aconteceu em setembro de 1998, muito antes do surgimento das redes sociais, mas o caso ganhou destaque no noticiário do país e mobilizou a cidade de 3 mil habitantes a 200km de Goiânia, no Centro Oeste do Brasil. Grande parte da população local se posicionou contra a decisão da família. O bispo da região deu uma entrevista no rádio criticando a ideia de interromper a gravidez e até mandou rezar uma missa pela vida do feto. O padre foi à casa da menina falar com o pai dela. E o promotor de Justiça fez o que pôde pra impedir a vítima de ter acesso a um direito garantido por lei.

O aborto é expressamente criminalizado no Brasil desde o Código Penal de 1830, mas a legislação, criada oito anos depois da indepência do país, só previa cadeia para médicos, parteiras ou qualquer pessoa que ajudasse uma mulher a interromper uma gestação. A mulher que abortava só passou a ser punida criminalmente com o Código Penal de 1890, o primeiro da República, que também abriu uma exceção, determinando que a interrupção da gravidez estava permitida quando fosse necessária para salvar a vida da gestante.

Em 1940, o presidente Getúlio Vargas assinou o decreto-lei criando o Código Penal que está em vigor até hoje. O regramento considera o aborto legal sempre que houver risco pra vida da gestante ou em todos os casos de gravidez resultante de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal ainda decidiu que a mulher também pode interromper a gravidez se for constatada a anencefalia do feto. Agora, um projeto de lei em discussão no Senador Federal prevê prisão de até 20 anos para toda mulher que se submeter a um aborto com mais de 22 semanas de gestação.

Após descobrir que a filha de 10 anos estava grávida, o pai da criança estuprada por seus vizinhos em Israelândia procurou saber como conseguir um aborto pra ela. Só que aí ele esbarrou numa realidade que existe até hoje. Mesmo em casos legais, é muito difícil conseguir uma interrupção de gravidez no Brasil. São poucos os hospitais públicos que oferecem o serviço no país e, mesmo nessas unidades, há profissionais que criam dificuldades desnecessárias ou até uma série de constrangimentos, como, por exemplo, obrigar a paciente a ouvir os batimentos cardíacos do feto.

Assim que a notícia se espalhou, a família do lavrador no interior de Goiás começou a sofrer assédio moral de vizinhos e líderes religiosos. De acordo com uma reportagem do Globo na época, o padre resposável pela paróquia local chegou a perguntar ao pai da vítima se ele teria coragem de cortar o pescoço da filha, dizendo que isso seria o mesmo que matar o próprio neto. O bispo da região disse no meio de uma missa que o aborto naquele caso seria como jogar uma criança no lixo. Uma romaria de vizinhos esteve na porta da casa da família pra protestar contra o encerramento da gravidez.

Página do GLOBO com reportagem sobre o caso de Israelândia, em 1998 — Foto: Acervo O GLOBO
Página do GLOBO com reportagem sobre o caso de Israelândia, em 1998 — Foto: Acervo O GLOBO

Nada disso fez o pai da menina mudar de ideia. O lavrador foi equivocadamente informado de que o aborto precisava ser autorizado pela Justiça. Mesmo sabendo que nenhuma lei exigia aquilo, o juiz da comarca local emitiu um parecer favorável à cirurgia, apoiado em laudos médicos indicando que a gestação colocava a menina em risco. Um promotor público ainda tentou impedir, apresentando um recurso totalmente descabido, mas o Tribunal de Justiça de Goiás rejeitou o questionamento. "A lei diz que esse aborto não é crime", afirmou o desembargador Gonçalo Teixeira, recitando o óbvio.

Só 11 hospitais públicos em todo o Brasil realizavam abortos legais, e nenhum deles ficava em Goiás. A família de Israelândia foi parar em São Paulo, no Hospital Jabaquara, a mil quilômetros de distância. Mas nem ali eles tiveram sossego. Houve protestos na porta do prédio, e uma médica chegou a gritar dizendo que era contra a cirurgia. Além disso, como a gestação estava na 18ª semana, e o hospital só fazia abortos até a 12ª semana, foi necessária uma reunião de quase seis horas entre médicos, para discutir as condições físicas, psicológicas e sociais da vítima.

Somente depois de 20 dias de sofrimento, quando a criança já estava na 18ª semana de gravidez, ela, finalmente, teve a gestação interrompida. No dia 3 de outubro de 1999, a menina foi submetida a uma microcesariana com anestesia geral, que teve duração de uma hora. A menor teve alta no dia seguinte, mas, de acordo com os médicos, ainda ficaria em São Paulo por duas semanas, para ser atendida por psicólogos. "Estou aliviada", disse a mãe da vítima. "O pesadelo acabou", descreveu o pai.

Mais recente Próxima O casal de namorados conduzido para delegacia por não abrir a porta do quarto