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O passado com um pé no presente.

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William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

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Gênio da literatura brasileira, Machado de Assis foi um escritor negro nascido no Morro do Livramento, no Rio, em 1839. A mãe havia imigrado dos Açores, em Portugal, e o pai era um pintor de paredes filho de escravizados alforriados. Durante muito tempo, no século XX, sugeriu-se que Machado havia sido omisso em relação aos horrores do sistema escravagista, do qual foi contemporâneo. Mas essa ideia caiu por terra quando análises recentes lançaram um olhar mais atento sobre a obra do escritor.

Agora "redescoberto" pelas redes sociais, depois de receber elogios de uma influenciadora americana, o livro "Memórias póstumas de Brás Cubas" é um dos principais exemplos de como Machado de Assis condenava, de uma maneira bem particular, a dura realidade da sociedade brasileira no século XIX.

Publicado originalmente no formato de folhetim, em edições da extinta "Revista Brasileira" ao longo de 1880, "Memórias póstumas de Brás Cubas" é um clássico machadiano editado em vários idiomas e celebrado mundialmente. No último sábado, a escritora e podcaster Courtney Henning Novak postou um vídeo no TikTok fazendo elogios efusivos à obra antes mesmo de concluir sua leitura. Ela chega a perguntar o que vai fazer com o resto de sua vida quando terminar o livro. Depois disso, a edição em inglês do romance ficou em segundo lugar entre os mais vendidos da Amazon.

A tiktoker americana Courtney Henning Novak viralizou ao compartilhar sua experiência de leitura de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', de Machado de Assis — Foto: Reprodução/Tik Tok/courtneyhenningnovak
A tiktoker americana Courtney Henning Novak viralizou ao compartilhar sua experiência de leitura de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', de Machado de Assis — Foto: Reprodução/Tik Tok/courtneyhenningnovak

Divisor de águas na carreira do próprio Machado, "Memórias" inaugurou a fase mais madura do autor e é classificado como abre-alas do Realismo na literatura nacional. Narrado em primeira pessoa por um sujeito que queria tanto sua biografia publicada que decidiu escrevê-la depois de morrer, o livro conta a história de Brás Cubas, um homem de família rica do século XIX que coleciona fracassos ao longo de uma vida patética. "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas", escreve o autor no início da obra.

Fiel às características do movimento realista, o livro de Machado descreve a sociedade da sua época de uma forma cáustica e irônica, sem a idealização dos artistas românticos. É justamente assim que o autor expõe suas críticas sociais. O narrador nasceu em uma família abastada do Rio de Janeiro do século XIX. Numa passagem do livro, Brás Cubas relembra de quando, na infância, "montava" no filho de um casal de escravizados em sua casa como se o menino fosse um animal. "Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria".

Em outra passagem, o narrador conta que, aos 6 anos, quebrou a cabeça de uma escravizada depois de ela se recusar a dar-lhe uma colher do doce de coco que estava fazendo.

Reginaldo Faria como narrador protagonista do filme "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (2001) — Foto: Reprodução
Reginaldo Faria como narrador protagonista do filme "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (2001) — Foto: Reprodução

Em suas memórias, Cubas descreve uma vida patética. Na juventude, ele se apaixona por uma cortesã, Marcela ("amou-me durante quinze meses e onze contos de réis"), mas é enviado pelo pai para estudar Direito em Coimbra. "A Universidade esperava-me com suas matérias árduas, e não sei se profundas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel". Na volta de Portugal, seu pai tenta inseri-lo na política casando-o com a filha de um homem influente, mas a moça escolhe um outro pretendente: "Virgilia comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia".

A busca do narrador por glórias esbarra em seguidos fracassos, até que ele morre, de pneumonia, aos 64 anos, quando tentava criar o "emplastro Brás Cubas", que seria um remédio para todos os males.

Esse olhar ácido para a elite branca do século XIX, porém, não era entendido como crítica à escravidão. E, como não há em sua obra um repúdio panfletário ao sistema perverso que sustentava a economia nacional na época, Machado chegou a ser considerado um escritor silencioso nesse aspecto. Mas a percepção mudou. Em 2008, o crítico Eduardo de Assis Duarte, professor de Letras da UFMG, lançou "Machado de Assis afro-descendente" (Pallas e Crisálida), antologia que traz à tona as evidências do repúdio contundente com que o "Bruxo do Cosme Velho" tratava a sociedade escravagista.

O escritor Machado de Assis quando jovem — Foto: Reprodução
O escritor Machado de Assis quando jovem — Foto: Reprodução

"A maioria dos textos é narrada por um personagem que, de modo algum, pode ser confundido com o próprio autor. Assim, são comuns os narradores dotados de um ar blasé, mais interessados, por exemplo, nos pés das donzelas que desfilam pela cidade do que nos dramas dos escravos; ou ainda, narradores cínicos como Brás Cubas, que tocam nos problemas dos subalternos com o menosprezo típico das elites", analisou Assis numa entrevista publicada pelo GLOBO em 2006.

De acordo com Assis Duarte, quando se tratava da escravidão, tanto o cronista quanto o poeta ou o ficcionista Machado "não titubeavam em expor o horror inerente ao sistema, ou a hipocrisia dos 'bons senhores', apesar dessa exposição surgir marcada pelas estratégias dissimuladoras nas quais ele era mestre". Segundo o especialista na obra do fundador da Academia Brasileira de Letras, o escritor não se mostrava como um militante abolicionista, mas tinha um olhar crítico sobre as "elites", ao mesmo tempo em que observava o povo com muito mais simpatia. Era o ponto de vista do escravizado.

Para estudiosos do universo de Machado, seria algo totalmente alheio ao estilo de um dos autores mais sofisticados da nossa literatura levantar bandeiras com palavras de ordem contra a escravidão. Até porque ele sabia com quem estava falando. O autor de "Dom Casmurro", "Memórias póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba" escrevia para um público minoritário e elitista, já que mais de 80% da população brasileira no século XIX não sabia ler. Ele chegou a usar mais de 20 pseudônimos nas suas crônicas em jornais, para não ser identificado ao criticar instituições como a Monarquia e a Igreja.

A própria negritude de Machado era pouco abordada até pouco tempo atrás. Segundo historiadores, a imagem do autor sofreu um "embranquecimento" que começou em vida. São raras as referências à cor de sua pele no século XIX. No próprio atestado de óbito do escritor, ele foi classificado como "branco". Nas aulas e nos livros de História, até bem pouco tempo atrás, Machado não era citado como um autor negro. Tanto que, em 2011, uma campanha publicitária para festejar os 150 anos da Caixa Econômica Federal exibia um ator de pele branca para representar o escritor e foi retirada do ar após críticas.

Em 2019, uma campanha da Faculdade Zumbi dos Palmares recriou uma foto clássica do autor de "Memórias póstumas de Brás Cubas", defendendo o uso da imagem para representá-lo. O movimento “Machado de Assis Real” descrevia a ação como “primeira errata para corrigir o racismo na literatura brasileira”, com o objetivo de "encorajar novos escritores negros" e, ao mesmo tempo, "dar a chance de a sociedade se retratar com o maior autor do Brasil", dizia o texto no site da campanha. Havia ainda um abaixo-assinado pedindo para que editores parassem de divulgar a imagem de Machado branco.

Machado de Assis em imagem divulgada nos livros e em foto da campanha — Foto: Divulgação
Machado de Assis em imagem divulgada nos livros e em foto da campanha — Foto: Divulgação
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