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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Noite de quinta-feira. A dona de casa Maria da Conceição Ramirez assistia à novela das 20h com cinco de seus sete filhos em casa, no número 1606 da Rua Alice, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio. Seu marido, o pequeno empresário João Costa Ramirez, havia saído de carro com as duas crianças mais novas. Segundos depois de uma queda de luz deixar a sala totalmente às escuras, por volta das 20h daquele dia 2 de agosto de 1973, há 50 anos, um homem armado entrou e, com seu rosto coberto por um pano, disfarçou a voz ao exigir: "Quero a criança menor que estiver na casa".

O pai da família havia saído com Luciana, de 3 anos, e Roberto, de 8. Estavam na residência Vera Lúcia, de 15 anos, Carmen Leonora, de 14, Eduardo, de 13, João, de 12, e Carlos, de 10 anos. Sob ameaça, Conceição disse a Carlinhos para ir com o invasor e ficar quieto ("Seu pai já vai te buscar"). Com o garoto aos prantos, o bandido saiu deixando um bilhete: "Aviso que a criança está em nosso poder e só entregamos após cer (sic) pago o resgate de cem mil cruzeiros". O dinheiro devia ser deixado numa caixa de concreto na própria Rua Alice dali a 2 dias. "Qualquer reação a vítima será liquidada".

Começava um crime que marcou profundamente o Rio. Quem conhece a história recente da cidade sabe que, entre os anos 1980 e 1990, a população carioca enfrentou uma "epidemia" de sequestros, crime que se tornou, então, uma prioridade das forças de segurança. Mas, em 1973, raptos eram algo raro. O episódio deixa isso claro quando se observa o amadorismo da polícia diante da situação e da imprensa, que publicava detalhes sem se preocupar em atrapalhar a investigação. O crime não foi resolvido, Carlinhos jamais foi visto de novo. Meio século depois, o mistério continua de pé.

Carlinhos: O pai do menino, João Ramirez, e cinco de seus filhos em casa, logo após sequestro — Foto: Antonio Carlos/Agência O GLOBO
Carlinhos: O pai do menino, João Ramirez, e cinco de seus filhos em casa, logo após sequestro — Foto: Antonio Carlos/Agência O GLOBO

"Eu era repórter de polícia do GLOBO e, naquela noite, tinha ido cobrir um caso de assassinato no bairro do Leblon. De repente, toca o rádio no carro e falam sobre um suposto sequestro na Rua Alice. Na época, a palavra sequestro não era nada comum. Mudamos de rumo na mesma hora", lembrou o jornalista Gilson Rebello, numa entrevista publicada pelo GLOBO em 2015. "Na parede da sala, havia dois pôsteres: um com a imagem de todos os filhos juntos e outro somente com o Carlinhos. Pedi ao fotógrafo que fizesse uma foto do retrato do menino. Foi aquela imagem que rodou o Brasil".

Segundo a reportagem do jornal publicada no dia seguinte, o sequestro parecia um erro de avaliação, já que a família de Carlinhos não era rica. O texto do jornal diz que as paredes da casa eram mal pintadas, o assoalho estava cheio de buracos e havia fios de eletricidade à mostra. João Costa trabalhava com o pai, Eduardo Costa, de 72 anos, em um laboratório farmacêutico em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O pequeno empresário garantiu que estava cheio de dívidas para quitar e não dispunha da quantia exigida. Teria que contar com ajuda para pagar o resgate.

A polícia desconfiava que o sequestrador era conhecido da família. De acordo com Maria Conceição, ele sabia onde era o disjuntor e parecia se deslocar muito bem na casa, mesmo na escuridão. Além disso, os cachorros não latiram para o invasor. Mas os inspetores também acharam estranha a postura da mãe de Carlinhos, que estava vendo TV quando os policiais chegaram para atender ao chamado e, durante os questionamentos, não se mostrava muito abalada com o rapto do menino. No decorrer dos trabalhos, o pai do vítima foi considerado suspeito de ser o mandante do crime e chegou a ser preso.

Carlinhos: A mãe do menino, Maria Conceição, deixa casa na Rua Alice, dias após o rapto — Foto: José Vidal/Agência O GLOBO
Carlinhos: A mãe do menino, Maria Conceição, deixa casa na Rua Alice, dias após o rapto — Foto: José Vidal/Agência O GLOBO

Uma das hipóteses dos policiais, jamais comprovada, era a de que João Ramirez estava tão endividado que teria forjado o sequestro do filho para obter dinheiro do avô do menino. Segundo outra teoria, o crime teria sido arquitetado por credores, com o intuito de forçar o pai de Carlinhos a pagar o que devia. De acordo com reportagens da época, o pequeno empresário não levava jeito para os negócios, havia acumulado fracassos, estava quebrado financeiramente, e o avô do garoto sequestrado permitira que ele criasse uma perfumaria em um anexo do laboratório em Duque de Caxias.

A maior parte dos 100 mil cruzeiros do resgate foram arrecadados por meio de doações. O dinheiro, porém, jamais foi entregue aos bandidos, o que reforçou as suspeitas sobre João Ramirez.

Vários suspeitos presos foram libertados por falta de provas. A polícia deteve, por exemplo, uma funcionária da empresa de João, relatando à imprensa que ela confessara ter sequestrado o menino para, com o resgate, cobrir um rombo deixado na firma pelo empresário. Em poucos dias, porém, a mulher foi solta e não se falou mais da confissão. Com todo o Rio hipnotizado pelas notícias do crime, os investigadores montaram um circo: um deles, por exemplo, viajou disfarçado de mulher atrás de uma pista. De calça turquesa, tamancos e peruca loura, não conseguiu nada.

O caso sofreu uma reviravolta em janeiro de 1974, quando um homem chamado Adilson de Oliveira disse que era o autor do sequestro e apontou João como mandante. O pai de Carlinhos chegou a ficar atrás das grades, mas, no dia seguinte, foi beneficiado por um habeas corpus. Não havia provas contra ele e, em pouco tempo, ficou evidente que a confissão era falsa.

Carlinhos: Buscas pelo corpo do garoto na Praia de Piratininga, Niterói, em 1974 — Foto: Ronald Fonseca/Agência O GLOBO
Carlinhos: Buscas pelo corpo do garoto na Praia de Piratininga, Niterói, em 1974 — Foto: Ronald Fonseca/Agência O GLOBO

O inquérito ficou parado até ser retomado quatro anos depois, com base nas informações de um detetive particular que também apontava João Ramirez como mandante. Nessa época, exames grafotécnicos mostraram que a letra do bilhete era de Silvio Pereira, que trabalhava na empresa do pai de Carlinhos. Além disso, veio à tona a informação de que a adolescente Vera Lúcia reconhecera Silvio no momento do sequestro, mas João a ignorara. O funcionário chegou a ser condenado a 13 anos e oito meses de reclusão, Silvio recorreu e, no segundo julgamento, foi absolvido por falta de provas.

O crime abalou o casamento dos pais de Carlinhos, que se separaram um ano depois do sumiço do menino. Conceição sempre se perguntou por que os cachorros não latiram quando o invasor apareceu e como o bandido pôde andar no escuro pela casa sem esbarrar em nada. A desconfiança dela ainda estava de pé em 2015, quando O GLOBO a entrevistou pela última vez. "Sempre achei que meu marido estava por trás, mas a polícia não quis me ouvir porque ele dizia que eu era doente mental. Tenho fé que Deus vai me revelar o que houve com Carlinhos", disse ela, na época aos 77 anos de idade.

Desde 1973, mais de dez homens já se apresentaram a Conceição dizendo que eram seu filho. Apesar de exames de DNA já terem sepultado qualquer esperança da família, provando que nenhum deles era o menino, a mulher continuava a receber a visita de um dos supostos Carlinhos. E, numa lógica que só pode entender quem experimentou a dor de não saber sequer se o filho está vivo ou morto, ela explica: "Ele acha que é meu filho. Sei que não é, mas entendo a dor dele. Ele não conheceu os pais, imagino os traumas que sofreu. Se puder aliviá-los, fico feliz. Quem sabe alguém também ajudou meu Carlinhos?"

Capa do GLOBO em 3 de agosto de 1973, com destaque para o sequestro de Carlinhos — Foto: Arquivo O Globo
Capa do GLOBO em 3 de agosto de 1973, com destaque para o sequestro de Carlinhos — Foto: Arquivo O Globo
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