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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Por O Globo


Cláudia Lessin, violentada e morta aos 21 anos de idade, em 1977 — Foto: Arquivo de família
Cláudia Lessin, violentada e morta aos 21 anos de idade, em 1977 — Foto: Arquivo de família

O operário Luís Gonzaga de Oliveira se revirava na cama, agoniado com uma dor de dente. Ainda de madrugada, resignado com a falta de sono, saiu do barracão que dividia com outros três funcionários da empreiteira Tecnosolo, na Avenida Niemeyer, no Leblon, no Rio, para observar a lua. Foi quando notou dois homens saltando de uma Brasília ali perto. Um deles puxava algo pesado do banco de trás. Desconfiado da movimentação no meio da madrugada, rabiscou com uma pedra, numa mureta, o número da placa do carro. Ele não sabia, mas estava anotando a chave para desvendar um mistério.

Após o amanhecer daquela segunda-feira, 25 de julho de 1977, há 45 anos, um cadáver foi visto na encosta da Niemeyer. A polícia recebeu uma chamada e, por sua vez, acionou o Corpo dos Bombeiros, já que a rocha junto ao mar, íngreme e coberta de limo, tornava impossível o resgate sem cordas. Horas depois, os socorristas recuperaram o corpo de uma jovem nua, o rosto desfigurado, com sinais de espancamento e violência sexual. Uma sacola cheia de pedras, atada por arames à moça, indicava a tentativa, frustrada, de jogá-la no mar — o corpo acabou preso num platô.

Assim que soube da notícia, Gonzaga ligou os pontos. A movimentação que testemunhara na sua madrugada insone era dos assassinos tentando se livrar do corpo, encontrado horas depois, numa área do costão conhecida como Chapéu dos Pescadores.

Ansioso para passar a informação, o operário telefonou para a Rádio Globo e forneceu a placa da Brasília. Era um presente para os investigadores, que, até então, tinham conseguido apenas traçar um perfil de Cláudia Lessin Rodriguess, de 21 anos, moradora de Copacabana, irmã da atriz Márcia Rodrigues, protagonista do filme "Garota de Ipanema" (1967). Graças a Gonzaga, a polícia chegou a Michel Frank, de 26 anos. Dono do carro flagrado pelo operário, Frank era proprietário de uma imobiliária em Ipanema e filho do sócio majoritário da fábrica de relógios Mondaine, exibidos nos pulsos de grande parte da classe média nos anos 1970.

Bombeiros resgatam o corpo de Claudia perto da Avenida Niemeyer, em 1977 — Foto: Otávio Magalhães/Agência O GLOBO
Bombeiros resgatam o corpo de Claudia perto da Avenida Niemeyer, em 1977 — Foto: Otávio Magalhães/Agência O GLOBO

Imediatamente, Michel se tornou o principal suspeito do crime, mas desapareceu assim que percebeu o cerco se fechando. Era o prenúncio da impunidade. Escondido da polícia, Michel contou, sempre por meio de um advogado, diferentes versões sobre seu envolvimento com Cláudia.

Num primeiro momento, admitiu que a jovem estivera em seu apartamento, na noite do sábado anterior, mas por pouco tempo. Numa época em que telefone celular não existia nem em pensamento, ela teria tocado a campainha pedindo para usar o telefone. Depois de várias ligações, teria saído por volta da meia-noite, sem informar para onde iria. A história começou a ruir quando o porteiro do prédio contou à polícia ter visto Cláudia, no domingo, com Michel e outro homem, branco e forte, identificado como Georges Kour, badalado cabeleireiro com salão no hotel cinco estrelas Méridien, no Leme.

Diante da evidência de que a vítima tinha passado a noite no imóvel, a família Frank, ressabiada por conta do envolvimento de Michel com drogas, começou a se preocupar. Chamou um criminalista e um perito para eles tentarem descobrir o que diria o laudo do exame cadavérico de Cláudia, que não havia sido divulgado. A ideia era verificar se a história que Michel contara ao pai, Egon, e, depois, aos dois especialistas, era verdadeira. O suspeito decidiu culpar a vítima por sua própria morte, afirmando que a jovem misturara drogas e álcool e morrera de overdose, antes de fazer um ménage à trois com ele e Kour, como pretendiam. Mostrando os próprios dedos feridos, Michel dizia que tentou desenrolar a língua da moça, com convulsões.

Soava verossímil, já que não era segredo o "entra e sai" de usuários de drogas no apartamento de Michel, no Leblon. Mas o resultado do exame cadavérico jogou por terra as esperanças do patriarca: a garota, dizia o laudo, fora esganada, violentada e espancada, sem ter consumido droga nenhuma. O advogado e o perito, vendo as contradições entre o documento e o que dizia o cliente, desistiram do caso. Michel e Kour continuaram insistindo na tese. Um amigo de ambos, Daniel Labelle, disse à polícia que estava no apartamento e viu Michel e Kour, ambos pelados, fazendo massagem cardíaca em Cláudia, até que o cabeleireiro teria exclamado: "Elle est mort".

Michel Frank: principal suspeito do assassinato de Cláudia Lessin — Foto: Reprodução
Michel Frank: principal suspeito do assassinato de Cláudia Lessin — Foto: Reprodução

"Uma mentira, contada muitas vezes, ganha status de verdade", garantiu o detetive Jamil Warwar, então responsável pelo 2º Setor da Delegacia de Homicídios, numa entrevista à repórter Maria Elisa Alves, do GLOBO, já em 2015, ao relembrar o episódio. "Claudia foi à casa de Michel Frank achando que iria encontrar um namoradinho numa festa. Acabou dormindo, esperando o rapaz até tarde. Não houve festa. Ao amanhecer, ela foi com Michel e Kour até a Avenida Niemeyer. Kour quis mostrar onde pescava e lá, na encosta, os dois tentaram violentá-la. Ela resistiu, e Michel esganou a moça. Quando os dois voltaram com a sacola com pedras para afundar o corpo, foram vistos pelo operário. Um oficial da Aeronáutica também viu o trio andando pela mureta".

O detetive contou que policiais foram subornados pelo pai de Michel Frank e que isso possibilitou a fuga do suspeito, que tinha dupla nacionalidade (brasileira e suíça). Dois meses depois do crime, ele já estava na Suíça, para onde seguiu, via Buenos Aires. Na capital argentina, deu uma de suas poucas entrevistas, defendendo-se: "Não sou o monstro assassino que estão querendo fazer de mim".

Diante da comoção da sociedade e da pressão da imprensa, o governo da Suíça prendeu Michel, mesmo sem um pedido oficial do Brasil. Mas o rapaz não ficou muito tempo atrás das grades. O governo brasileiro não enviou os documentos pedidos pelos europeus, nem fez acusação formal. Assim, o juiz de instrução de Zurique libertou o empresário em dezembro de 1977.

Em 1980, enquanto Michel trabalhava na Suíça, Georges Kour era julgado no Brasil. Embora fotos do pescoço de Cláudia, com marcas de polegares, tenham sido anexadas ao processo, o cabeleireiro foi absolvido, no dia 1 de dezembro, por seis votos a um, da acusação de homicídio e violência sexual. O suspeito recebeu a punição de dois anos de prisão por ocultação de cadáver, mas, como já estava detido havia três anos, foi solto imediatamente após a sentença.

A Justiça suíça recebeu cópias do processo, mas entendeu que não havia provas para acusar Michel do homicídio e o condenou, em 1981, a dois meses de prisão por uso de entorpecentes. Em 17 de setembro de 1989, ele foi assassinado com quatro tiros no rosto, após discutir com um casal que fora a seu apartamento, em Zurique, para cheirar cocaína. A família não foi ao enterro, acompanhado apenas por um advogado, um policial e o analista de Michel. Egon, o pai, morreu em 2005.

Georges Kours: cabeleireiro suspeito do assassinato de Cláudia Lessin — Foto: Manoel Soares/Agência O GLOBO
Georges Kours: cabeleireiro suspeito do assassinato de Cláudia Lessin — Foto: Manoel Soares/Agência O GLOBO
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