Blog do Acervo
PUBLICIDADE
Blog do Acervo

O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Depois que o Titanic colidiu com um iceberg gigante e afundou nas águas geladas do Atlântico Norte, há 110 anos, na madrugada de 15 de abril de 1912, o navio foi manchete de todos os grandes jornais do mundo. Nos primeiros dias após a tragédia, informações imprecisas ou equivocadas estamparam as capas das publicações em vários idiomas. Muitas afirmavam que ninguém tinha morrido. Só com o passar do tempo ficou evidente a dimensão do desastre, hoje considerado um marco no jornalismo, devido ao padrão que se observou em coberturas daquele porte a partir de então.

A maior embarcação até então construída zarpou de Southampton, na Inglaterra, rumo a Nova York, nos Estados Unidos, com 2.240 pessoas. Era uma "maravilha da engenharia naval". Porém, mesmo com as 46 mil toneladas de peso e os 269 metros de comprimento, o Titanic teve o seu casco partido em dois pedaços por um iceberg a cerca de 600km do Canadá, quatro dias depois de sua partida do Reino Unido. Morreram naquela tragédia 1.513 pessoas, em grande parte passageiros que viajavam na terceira classe e receberam tratamento desigual durante a operação de abandono do navio.

Aquela foi a primeira grande cobertura com uso de telégrafos sem fio, uma tecnologia ainda em sua infância na época. Quando o Titanic bateu no iceberg, a tripulação enviou sinais de socorro por código Morse (a sigla "CQD" seguida da universal "SOS"). As mensagens chegaram a outros navios, que foram na direção do transatlântico, e a estações de rádio no continente europeu. Então, agências de notícias captaram os sinais e começaram a mandar informes via telégrafo para jornais no mundo todo, antes que os dados fossem checados. Por consequência, alguns informes eram confusos ou equivocados.

Edição vespertina do "Vancouver World" de 15 de abril de 1912: "Nenhuma vida perdida" — Foto: Reprodução
Edição vespertina do "Vancouver World" de 15 de abril de 1912: "Nenhuma vida perdida" — Foto: Reprodução

Confiando em boletins preliminares sobre um grande acidente que ocorrera pouco antes da meia-noite, os jornais vespertinos de 15 de abril de 1912 noticiaram o naufrágio, mas a maioria afirmava que não havia vítimas. “Nenhuma vida foi perdida”, publicaram o “Daily Mail”, de Londres, e o "Vancouver World", do Canadá, entre outros. Sem dados precisos, difundiu-se uma onda de otimismo turbinada pela empresa que construiu o Titanic. Executivo da White Star Line, Philip Allbright ganhou destaque ao afirmar que o navio “era capaz de resistir a qualquer dano" e "flutuaria mesmo de cabeça para baixo".

Jornais como o “Christian Science Monitor”, de Boston, acolheram esse tom positivo: “Passageiros removidos com segurança e Titanic levado a reboque”. O devaneio era tal que a população de Nova York ainda esperava a embarcação, inteirinha, no dia 14 de abril de 1912. Os equívocos de apuração, ou a esperança exacerbada, não resistiram, porém, quando a verdadeira dimensão do desastre chegou aos dois lados do Atlântico. Então, iniciou-se outra etapa que se tornou uma constante nas coberturas desse tipo: reportagens listando os erros que levaram ao desastre e buscando culpados.

Até então, o jornalismo contava com a dinâmica de um mundo visto como uma "vila global", no qual uma rede rudimentar de informantes espalhava as notícias de forma muito menos linear. Segundo pesquisadores, a cobertura do Titanic iniciou um ciclo do noticiário durante eventos grandes e caóticos que se repete até hoje. Primeiramente, ocorre uma corrida atrás da informação. Os periódicos relatam o que é tido como verdade, embora o caos inicial impeça, muitas vezes, a apuração correta. Procuram-se também histórias pessoais, que individualizam o desastre e o tornam mais dramático.

O RMS Titanic depois de partir de Southampton, na Inglaterra — Foto: Reprodução/Wikimedia
O RMS Titanic depois de partir de Southampton, na Inglaterra — Foto: Reprodução/Wikimedia

Quando se dá conta da real dimensão da história, chega a hora de "apontar o dedo". No dia 21 de abril de 1912, o jornal americano “The Times-Dispatch”, de Virgínia, estampou na primeira página: “Terrível sacrifício de vidas devido à mania moderna por velocidade”. Era uma referência direta a um obejtivo alardeado por executivos da White Star Line. Eles queriam que o Titanic vencesse a distância entre o Reino Unido e os EUA em tempo recorde. Para isso, traçou-se a rota de travessia pelo Norte. Embora mais curta, a trajetória reservava o perigo dos icebergs gigantes desgarrados do Pólo Ártico.

Uma pesquisa da Biblioteca da Virgínia, no centenário do naufrágio, reuniu artigos antigos com séries de medidas hipotéticas que teriam evitado a tragédia. Se o Titanic tivesse navegado pelo Sul, por exemplo, não haveria icerbergs no caminho. Se os marinheiros usassem binóculos, teriam identificado o iceberg a tempo de impedir o impacto. Ou, ainda, se o capitão tivesse dado antes a ordem para abandonar o navio, menos gente teria morrido. Tudo deixou claro como "o homem" fora humilhado pela mesma natureza que acreditava ter vencido ao construir a gigantesca embarcação.

Semelhanças com todas essas "fases" são observadas até hoje no jornalismo durante a cobertura de grandes acontecimentos, como os ataques terroristas ao World Trade Center, em 2001, ou a tragédia com o voo 447 da AirFrance, que caiu no Oceano Atlântico, em 2005.

Em 17 de abril de 1912, o “Los Angeles Times” publicou a charge "O verdadeiro ‘Titanic’”, mostrando o desenho de um iceberg com uma "expressão" visivelmente distraída partindo uma embarcação ao meio com as suas "mãos". Em meio à saraivada de erros apontados pelos jornais depois do desastre, atos de heroísmo também receberam destaque na imprensa da época, embora análises posteriores constassem que a maioria foi fruto da imaginação de jornalistas ou das fontes ouvidas.

Charge do "Los Angeles Times": Iceberg partindo "Titanic real" em dois pedaços — Foto: Reprodução
Charge do "Los Angeles Times": Iceberg partindo "Titanic real" em dois pedaços — Foto: Reprodução

O próprio "LA Times", em 19 de abril de 1912, contou o caso de um tal major Butt, que, com uma arma na mão, "reteve homens frenéticos e salvou mulheres”. Teve ainda a história da senhora Strauss, que "desistiu de seu lugar no bote salva-vidas para ficar com seu marido no navio”. Casos como esses contribuíram para garantir ao malfadado transatlântico um espaço nobre no imaginário popular e, por consequência, na indústria cultural. As "imagens" deixadas pela cobertura jornalística foram bastante exploradas no filme "Titanic" (1997), de James Cameron, com Leonardo DiCaprio e Kate Winslet.

"Não é verdade que o Titanic, logo após a sua construção, era considerado 'inafundável', mesmo pelos jornais. Isso é uma parte importante de seu mito", explicou Richard Howells, autor do livro “The Myth of the Titanic” (O mito do Titanic, em tradução livre), em uma reportagem do GLOBO de 2012. "A história de sua infalibilidade foi essencialmente inventada pela mídia logo depois do naufrágio, em uma tentativa de construir um significado cultural para um evento aleatório".

Para historiadores, o grande espaço destinado ao naufrágio na imprensa do mundo inteiro não está relacionado ao número de pessoas mortas naquela noite. Dez anos antes, a erupção do Monte Pelée, em Martinica, havia ceifado cerca de 30 mil vidas, mas a tragédia havia sido parcamente noticiada. O que alçou o Titanic às manchetes dos maiores jornais foram o circo armado em torno do navio e, claro, os seus ilustres passageiros. Havia editores, artistas, banqueiros, empresários, enfim, muita gente da alta sociedade britânica e americana viajando no transatlântico que foi parar no fundo do mar.

A maioria dos "figurões" foi salva nos botes, que, no total, tinham capacidade para acolher apenas metade dos presentes na embarcação. Poucas pessoas da terceira classe chegaram ao convés superior para tomar lugar nesses botes. A maioria se perdeu nos labirintos de corredores e escadas ou ficou "presa" atrás de grades que separavam as suas instalações da primeira e segunda classes. Em alguns lugares do navio, a tripulação impediu que passageiros da terceira classe escapassem, com barreiras trancadas ou vigiadas por marinheiros.

Mais recente Próxima Nick Drake: Oferendas para o bardo inglês que morreu de tristeza e virou um ícone cult