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O passado com um pé no presente.

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William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Por William Helal Filho


Gal Costa posa para foto em outubro de 1969, numa rua de Ipanema — Foto: Eurico Dantas/Agência O GLOBO
Gal Costa posa para foto em outubro de 1969, numa rua de Ipanema — Foto: Eurico Dantas/Agência O GLOBO

Gal Costa tinha 24 anos e era uma artista em franca ascensão quando fez um ensaio de fotos para O GLOBO perto do Zeppelin, um bar tradicional de Ipanema, no Rio, em outubro de 1969. Nascida e criada em Salvador, a cantora havia chegado à capital fluminense quatro anos antes, seguindo os passos de amigos de palco baianos como Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

"Minha família insistiu para eu não vir. Queriam que eu trabalhasse numa repartição. Vê se pode", disse ela durante uma entrevista já em 1970, quando estava enfurnada no seu apartamento, também em Ipanema, tentando compor músicas próprias para um próximo disco. "O importante é ousar. Esta é uma necessidade orgânica que eu tenho. O medo não faz parte da minha vida".

Maria da Graça Costa tinha um jeito meio aéreo de conversar, mas ela não esteve neste mundo a passeio. Durante entrevistas, podia até não se posicionar politicamente com a firmeza de diversos artistas de sua época. Também não compunha músicas de contestação. Mas a sua atitude no palco e nas gravações em estúdio durante os anos de recrudescimento da ditadura militar, quando potestar foi urgente, fala por si só.

Gal alcançou grande projeção no fim dos anos 1960, ao gravar músicas como "Baby", de Caetano, e "Que pena", de Jorge Ben. Apesar de inserida na agitação estética da Tropicália, a cantora era, até então, bastante associada à bossa nova. Não que ela achasse isso ruim. O volão de João Gilberto fora, de fato, o responsável por despertar na artista o encantamento pela música, na adolescência.

Mas, em novembro de 1968, portanto semanas antes do Ato Institucional 5 (AI-5), a jovem soteropolitana surgiu no IV Festival da Música Popular Brasileira, completamente repaginada, de visual moderno, coberta de adereços espelhados e soltando a voz com uma potência que talvez nem ela soubesse que tinha. Janis Joplin teria aplaudido se estivesse no Teatro Record, em São Paulo.

A poderosa rendição de "Divino maravilhoso" (Caetano e Gil) que ela entregou ali aproximou sua própria imagem da rebeldia roqueira daqueles tempos e ajudou a tornar essa canção um hino de protesto resgatado até hoje durante manifestações. "É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte", bradou Gal Costa de olhos fechados, o corpo curvado para o chão.

Seu primeiro disco solo, "Gal Costa", foi gravado também em 1968, mas, com a prisão de Caetano e Gil pela ditadura, em dezembro daquele ano, a Phillips decidiu segurar o lançamento do LP, que chegou às lojas apenas no ano seguinte e foi muito bem recebido pelo público. Meses depois, era a vez de "Gal", considerado um dos melhores álbuns da música brasileira.

Conhecido como "o disco psicodélico", o LP foi gravado enquanto Caetano e Gil estavam no exílio. Gal permaneceu no Brasil, mas não ficou calada diante de um contexto de repressão e censura à arte. Transformou a raiva em um dos seus trabalhos mais ousados de sua carreira.

No setlist de "Gal", há clássicos como "País tropical", de Jorge Ben, e "Meu nome é Gal", de Erasmo Carlos e Roberto Carlos. Tem também "Cinema Olympia", de Caetano, e "Com medo, com Pedro", de Gil. Mas, principalmente, é um álbum sujo e experimental, atravessado por guitarras distorcidas e pelos gritos de uma artista em pé de guerra. Era uma diva da contracultura cantando "A cultura/ A civilização/ Elas que se danem/ Ou não", da música "Cultura e civilização", de Gil.

A baiana passaria a virada de ano seguinte no Reino Unido, com os amigos exilados. Ela foi com eles ao Festival da Ilha de Wight, encantou-se com a libertinagem do movimento hippie europeu, filmou um dos últimos shows de Jim Hendrix e voltou da viagem com boa parte do material de "Legal", um grande sucesso de vendas, lançado ainda em 1970, com destaque para as faixas "London, London" e "Deixa sangrar", uma brincadeira com o hit "Let it bleed", dos Rolling Stones.

No verão entre 1971 e 1972, Gal fez história com o show "Fa-Tal". Produzido por Wally Salomão no Teatro Tereza Raquel, em Copacabana, o espetáculo atraiu a esquerda carioca em um ambiente de libertação, de fuga do moralismo, e originou o disco ao vivo "Fa-tal/Gal a todo vapor", que inclui falhas de performance, momentos de improviso e uma versão de oito minutos e meio de "Vapor barato" (Jards Macalé e Salomão), com direito a gritos e uivos da musa do desbunde.

Dessa fase contestadora, que, talvez não por coincidência, acompanhou justamente o período mais violento do regime militar, entre 1968 e 1973, é impossível não ressaltar o álbum 'Índia". Lançado em 1973, o LP foi para as lojas envolvido por uma embalagem escura. Era uma exigência da censura, para que o público não visse o close da tanga de Gal na capa e nem os seios da cantora no verso.

Os militares também se indignaram com os versos de "Presente cotidiano", de Luiz Melodia, e proibiram que a faixa fosse tocada no rádio ou mesmo cantada em espaços públicos. Não queriam as pessoas em contato com a letra da música, que, segundo eles, transmitia "contestação, protesto e revolta".

Gal achava toda essa histeria da censura do regime militar algo ridículo, que o seu espírito livre mal podia compreender. Em uma entrevista publicada pelo GLOBO em 2021, quando a baiana de então 76 anos lançou seu último disco, a cantora definiu assim o sua forma de se posicionar politicamente:

"Meu passado me mostrou como uma mulher, entre aspas, militante, coisa que nunca fui... Por acaso, fui uma mulher libertadora, no sentido verdadeiro, procurei viver a vida que acreditava e acredito. Mas nunca tive essa personalidade no sentido de militar mesmo (...) Acredito na liberdade e no respeito. Sou uma democrata".

Gal Costa. A capa do álbum 'Índia', censurado pela ditadura, em 1973 — Foto: Reprodução
Gal Costa. A capa do álbum 'Índia', censurado pela ditadura, em 1973 — Foto: Reprodução
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