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Por Rafael Lopes

Comentarista de automobilismo do Grupo Globo

Voando Baixo — Rio de Janeiro

Mark Thompson/Getty Images

É ponto pacífico que a história da Fórmula 1 é marcada por inúmeras polêmicas desde sua criação, no distante ano de 1950. Mas é fato que nenhuma temporada gerou mais celeuma que a de 2008. Tudo por causa do escândalo do Singapuragate, até hoje o único caso descoberto - provado e comprovado, diga-se de passagem - de manipulação de resultados na maior categoria de automobilismo. Descoberta oficialmente um ano depois, a armação engendrada por Flavio Briatore, então chefe da Renault, acabou viciando o resultado do GP de Singapura e influenciando na decisão do campeonato daquele ano, visto que a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) não anulou a corrida e manteve os pontos obtidos naquele dia válidos na classificação do campeonato.

Singapuragate: 15 anos depois, GP de Singapura de 2008 segue levantando polêmicas — Foto: Reprodução/FOM

O caso voltou à tona nesta semana, com as declarações de Bernie Ecclestone de que ele, então chefe comercial da Fórmula 1, e Max Mosley, presidente da FIA, souberam da armação ainda em 2008, na semana do GP do Brasil, última corrida daquela temporada. E que optaram por não fazer nada para "não manchar a imagem da categoria". E Felipe Massa, maior prejudicado pela armação, respondeu que, com as novas revelações, iria procurar uma reparação na Justiça, para que também fosse reconhecido como campeão daquela temporada. Polêmica pronta.

Para quem não lembra, a armação de Briatore visava garantir a vitória de Fernando Alonso naquela corrida. Pressionado pela Renault, que ameaçava retirar-se da Fórmula 1 como equipe no fim daquele ano, o dirigente italiano precisava dar uma resposta à montadora francesa. E resolveu criar essa situação. Mandou Nelsinho Piquet bater na curva 14 do Circuito de Rua de Marina Bay, único ponto em que não havia possibilidade de um resgate do carro sem a entrada do safety car, na 15ª volta. Alonso, por sua vez, já havia feito seu pit stop na volta 12. Ou seja: foi beneficiado diretamente pela atitude do companheiro de equipe. O carro de segurança provocou uma corrida aos boxes: com a precipitação no trabalho, a Ferrari acabou errando na parada de Felipe Massa, que caiu da liderança para a última posição. O brasileiro não marcou pontos na prova, enquanto Lewis Hamilton, seu rival na briga pelo título, anotou seis com a terceira posição. O que seria decisivo para o campeão de 2008.

Felipe Massa para no fim do pit lane após ser liberado com a mangueira de reabastecimento em Singapura-2008 — Foto: Paul-Henri Cahier/Getty Images

Em 2008, o blog Voando Baixo já existia havia dois anos. Era minha terceira temporada como setorista de automobilismo do GE.globo (na época, GloboEsporte.com). Então, acompanhei aquele campeonato muito de perto. Em especial, toda a semana do GP do Brasil, em Interlagos, quando acompanhei a agenda de Felipe Massa. Com toda essa polêmica revivida nesta semana, vi muita desinformação ser propagada nas mídias sociais e na internet. Por isso, resolvi trazer uma espécie de "fato ou fake" daquela temporada, para confirmar algumas verdades e desmentir alguns mitos criados 15 anos depois daquele polêmico campeonato.

Massa com o troféu da vitória no GP do Brasil de 2008 — Foto: Getty Images

- Equilíbrio desde o primeiro GP

Felipe Massa x Lewis Hamilton: temporada 2008
A evolução de pontos dos dois pilotos ao longo do polêmico campeonato
Fonte: Federação Internacional de Automobilismo (FIA)

Felipe Massa e Lewis Hamilton travaram um duelo equilibradíssimo desde a primeira corrida de 2008, se alternando na liderança do campeonato desde o GP da Austrália. A maior diferença a favor do inglês foi de 14 pontos, obtida logo após a corrida na Malásia, em Sepang, a segunda prova do ano. Já o brasileiro abriu dez de frente após o triunfo no GP da França, em Magny-Cours, a oitava corrida. Mas se olharmos além dos pontos, veremos um enorme equilíbrio também em outros números.

Estatísticas de Felipe Massa e Lewis Hamilton em 2008

Vitórias Felipe Massa 6 x 5 Lewis Hamilton
Poles Felipe Massa 6 x 7 Lewis Hamilton
Primeiras filas Felipe Massa 10 x 9 Lewis Hamilton
Melhores voltas Felipe Massa 3 x 1 Lewis Hamilton
Pódios Felipe Massa 10 x 10 Lewis Hamilton
GPs nos pontos Felipe Massa 13 x 14 Lewis Hamilton
Abandonos Felipe Massa 3 x 1 Lewis Hamilton
GPs sem marcar pontos Felipe Massa 5 x 3 Lewis Hamilton

- Derrota: erros de Massa e da Ferrari?

Motor estourado na penúltima volta tirou vitória de Felipe Massa no GP da Hungria de 2008 — Foto: Attila Kisbenedek/AFP via Getty Images

Pois é. Não dá para dizer que um campeonato decidido por apenas um ponto teve um desequilíbrio tão grande assim. É fato que Felipe Massa cometeu seus erros -principalmente no início do ano - e a Ferrari o deixou na mão algumas vezes em 2008. Mas Lewis Hamilton e a McLaren erraram tanto quanto o brasileiro e a equipe italiana. Em um ano com carros equivalentes, como eram o F2008 e o MP4-23, dificilmente o rival deixaria de conquistar o título com facilidade se o rival errasse em uma escala tão maior assim. Esse é um dos mitos que foi aumentado ao longo dos anos propositalmente, até para tentar minimizar a influência da manipulação de resultados promovida pela Renault no GP de Singapura.

Lewis Hamilton bateu na traseira do carro de Kimi Raikkonen na saída dos boxes no GP do Canadá de 2008 — Foto: Emmanuel Dunand/AFP via Getty Images

- As famosas rodadas do GP da Inglaterra

Uma das rodadas de Felipe Massa no molhado GP da Inglaterra de 2008, em Silverstone — Foto: Darren Heath/Getty Images

Silverstone foi um caso de erro primário da Ferrari que acabou na conta de Felipe Massa. E que a cada ano parece aumentar mais. O brasileiro teve uma corrida terrível na Inglaterra, rodando várias vezes em uma pista encharcada, não marcando pontos e terminando duas voltas atrás do vencedor Lewis Hamilton. Essa corrida transformou Massa, aos olhos do público leigo, em um piloto que não sabia andar na chuva. Pura balela: em 2007, ele travou um duelo memorável com o polonês Robert Kubica debaixo de um dilúvio em Fuji, no Japão. E aniquilou a concorrência no GP do Brasil, na decisão do campeonato de 2008, em uma corrida típica de Interlagos, com aquele tradicional chove-e-para.

Mas o que aconteceu em Silverstone, então? Simples: a regra de parque fechado entre classificação e corrida já existia. Fez sol na decisão da pole, mas existia a previsão de chuva para o domingo - o que efetivamente aconteceu. A Ferrari, então, fez um acerto extremo para pista seca para o brasileiro, que marcou a pole. Mas com o carro baixo demais, virou passageiro nas inúmeras poças d'água do circuito inglês e rodou várias vezes. Já a McLaren apostou na chuva com Hamilton - e se deu bem demais. Com um carro bem acertado e seu talento, ele deu show e venceu com uma enorme vantagem: mais de um minuto para o segundo colocado, o alemão Nick Heidfeld, da BMW Sauber.

Lewis Hamilton comemora a vitória no GP da Inglaterra de 2008, no molhado circuito de Silverstone — Foto: Rui Vieira/PA Images via Getty Images

- Singapuragate não influenciou no título?

Nelsinho Piquet sai do carro após o acidente no GP de Singapura de 2008 — Foto: Reprodução

Esta é a maior falácia de todas. A armação engendrada por Flavio Briatore viciou a corrida de todo mundo em Singapura - só por isso já deveria ter sido anulada. Mexeu com estratégias, antecipou pit stops, jogou pilotos da frente para as últimas posições e vice-versa. Um absurdo total. Para se ter uma ideia, depois do acidente de Nelsinho Piquet, da entrada do safety car e das paradas de box, apenas um piloto não teve sua posição de pista mexida dos 18 que ainda estavam na corrida. Inacreditável.

A existência de uma corrida com resultado viciado nas estatísticas históricas da Fórmula 1 é um absurdo completo. É claro que, 15 anos depois, não dá mais para anular a corrida com efeitos esportivos, cancelando os resultados dos pilotos em termos de pontos na pista. Mas a FIA deveria cancelar o GP de Singapura de 2008 nas estatísticas. Ninguém deveria contar essa corrida em seus currículos por causa do resultado viciado pela armação da Renault. Repito: é um absurdo. E a melhor forma de fazer justiça com a maior vítima disso tudo, justamente Felipe Massa, seria também reconhecê-lo como campeão daquela temporada. Tardiamente, é verdade. Mas corretamente.

Fernando Alonso comemora a vitória no GP de Singapura de 2008 — Foto: Getty Images

E isto em nada diminuiria a conquista de Lewis Hamilton, que também foi uma vítima de todo esse escândalo. Aliás, todos nós que vivemos aquele ano, que nos emocionamos com aquela temporada, com a espetacular decisão do campeonato em Interlagos fomos vítimas. Vivemos uma mentira. Cobrimos uma mentira. Nós nos emocionamos com uma mentira. O final mais emocionante de um campeonato da história da Fórmula 1 foi uma mentira manchada pelo Singapuragate.

Roubaram aquela que talvez seja minha melhor lembrança de trabalho em uma pista de corridas. Tudo isso me deixa enojado. Envergonhado. Extremamente irritado. E com aquela sensação de ter feito papel de otário em Interlagos naquele dia 2 de novembro de 2008. Triste.

Felipe Massa com o troféu da vitória no GP do Brasil de 2008, em Interlagos — Foto: Darren Heath/Getty Images

Perfil Rafael Lopes — Foto: Editoria de Arte/GloboEsporte.com

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