Por Bruno Paes Manso, Núcleo de Estudos da Violência da USP

A diminuição dos homicídios no primeiro semestre de 2023 segue uma tendência de queda que teve início cinco anos atrás, em 2018. As taxas continuam elevadas, mas caso a redução se mantenha e a letalidade policial não cresça, o país pode fechar o ano com a menor quantidade de mortes intencionais violentas desde 2011. Para refletir sobre esse movimento, é importante analisar a intensa transformação do mercado do crime brasileiro, aprofundada nas últimas duas décadas.

O principal agente de transformação da cena criminal e do mercado de drogas no país foi o Primeiro Comando da Capital (PCC), criado trinta anos atrás, no dia 31 de agosto de 1993. Dez anos depois de sua fundação, a partir de 2003, a facção passou a apostar na venda de drogas para financiar as atividades do grupo e de seus integrantes, criando um modelo de governança criminal que se consolidou e foi copiado por dezenas de gangues por todo o país.

Essa transformação se espalhou porque os criminosos paulistas inventaram uma forma de regular o mercado do crime, aproveitando as brechas do sistema de segurança e de justiça. De dentro de prisões superlotadas de São Paulo, controladas pelos faccionados, o grupo estabeleceu regras para os que atuavam com atividades ilegais.

Buscando agir como uma agência reguladora do mercado do crime, assumiram um papel relevante na mediação de conflitos e na punição dos desviantes, criando um ambiente de negócios mais previs��vel e profissional, que favoreceu o aumento dos lucros.

A aposta na racionalidade e na redução da violência permitiu à facção tecer uma ampla rede de parceiros nos demais estados e nos países sul-americanos produtores da droga, contribuindo para tornar os traficantes brasileiros peças importantes na exportação da cocaína do continente para o resto do mundo.

Essa nova governança foi replicada com mais ou menos sucesso nos demais presídios abarrotados do Brasil, que passaram de 90 mil detentos nos anos 90 para mais de 800 mil três décadas depois. Os criminosos dos outros estados puderam trocar experiências nos presídios federais, criados a partir de 2006. A conexão dessas diversas redes de criminosos nos estados aumentou a circulação de mercadorias ilícitas, armas e de capital no mercado do crime.

Nessa configuração mais funcional e articulada, o PCC e Comando Vermelho atuam como facções nacionais, presentes em quase todos os estados, disputando espaço com mais de 50 grupos regionais que se espalharam pelo país. Diversos estados contam ainda com a participação crescente de grupos criminosos formados por policiais e ex-policiais – as milícias do Rio são os mais emblemáticos, mas o problema se espalha em diferentes graus em outras unidades da federação.

Nesse cenário, as taxas de homicídios e suas variações de curto prazo passaram a depender cada vez mais do nível de rivalidade entre os grupos que atuam em cada território. Como os dados do Monitor têm indicado nos últimos cinco anos, desde que o projeto foi criado, as variações intensas em períodos curtos funcionam como termômetros que indicam à dinâmica dos conflitos dos mercados criminais regionais. Foi o caso, neste primeiro semestre, do Rio de Janeiro e do Amapá, cujos quadros foram detalhados no artigo do FBSP.

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Os dois estados tiveram crescimento elevado das taxas de homicídios. No Rio, disputas entre milicianos na capital ajudam a explicar a alta, da mesma forma que conflitos no começo do ano entre gangues do tráfico podem ser uma das causas do repique no Amapá, que além de tudo tem atualmente a polícia mais violenta do Brasil.

A redução acumulada nos últimos cinco anos em diversos estados brasileiros, da mesma maneira, pode indicar uma relativa estabilidade nas posições de poder das gangues regionais em seus territórios, que vem se assentando depois das disputas acirradas da última década.

Todavia, o quadro favorável de diminuição da violência letal coloca outros problemas e desafios. O projeto expansionista de uma gangue, por exemplo, pode mudar esse quadro, como ocorreu este semestre no Rio, levando a sociedade a ficar dependente dos planos e estratégias de mercado dessas facções, em vez de se respaldar em políticas públicas.

Além disso, o poder econômico e político crescente desses grupos criminosos tem levado à formação de tiranias armadas que ditam a regra para a população de bairros pobres, punindo ou expulsando os que atrapalham os lucros de seus negócios. Enquanto o Brasil vive formalmente numa democracia, os moradores desses lugares são governados por tiranias criminais, armadas e implacáveis, vivendo o que alguns definem como a paz do cemitério.

Bruno Paes Manso é jornalista e pesquisador do NEV-USP

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