Lucro falso e assinatura forjada: Veja os detalhes da fraude nas Americanas

As investigações mostraram até agora um esquema complexo usado por ex-executivos das Americanas para falsificar os resultados da companhia e com isso manipular o mercado de capitais. Nos últimos dias, a Polícia Federal deflagrou a Operação Disclosure, com mandados contra 14 ex-executivos da empresa.

Veja a seguir os detalhes de como funcionava o esquema, segundo o Ministério Público Federal:

Como funcionava a fraude nas Americanas

Diretoria inseria receitas falsas no balanço da empresa. Segundo o MPF, todos os meses os diretores da empresa elaboravam o que era chamado de "kit fechamento". Nele constava inicialmente uma versão inicial do resultado, com as informações reais. Eram então criadas novas versões do documento, com informações falsas.

Prejuízo virava lucro. Em agosto de 2019, por exemplo, a empresa teve prejuízo de R$ 46,9 milhões. Na versão falsa do resultado, esse prejuízo é transformado em lucro líquido de R$ 18,3 milhões.

Receitas de marketing fictícias, com falsificação de assinaturas. Um dos artifícios era a falsificação de VPCs (Cartas de Verba de Propaganda Cooperada). São créditos emitidos pelos fornecedores devido a ações de marketing realizadas pela varejista. A investigação aponta a criação de VPCs fictícias, inclusive forjando a assinatura de terceiros.

O tema é discutido por duas executivas em mensagens de whatsapp. No diálogo, a executiva Flávia Carneiro reclama de duas cartas que vieram com assinaturas idênticas: "A questão não ser a mesma pessoa. E na mesmíssima posição na linha e no mesmo enquadramento". E completa: "Embora seja a mesma pessoa ela não posicionaria a assinatura exatamente igual na linha destinada a assinatura."

Mensagens reproduzidas no parecer do MPF sobre o caso Americanas
Mensagens reproduzidas no parecer do MPF sobre o caso Americanas Imagem: Reprodução/Parecer MPF

Empréstimos não eram computados como dívidas. Outro foco da fraude eram as operações de risco sacado. Eles são como empréstimos que servem para alongar o prazo das empresas com fornecedores. "Para esconder o passivo, as operações de risco sacado foram lançadas no campo "fornecedores", sem qualquer explicação sobre quem seriam os credores, qual o prazo de financiamento e quais os custos associados", diz o parecer do MPF. Outro artifício usado era despesas de frete, pessoal e outras ficarem registradas como investimentos.

Estratégias para driblar a auditoria

Ex-CEO Miguel Gutierrez só recebia informações via pen drive. Segundo o MPF, Gutierrez era um dos principais responsáveis pelo esquema. Para se blindar, o executivo pedia que as informações sobre a fraude fossem gravas em pen drive e entregues fisicamente.

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Isso aparece em e-mail do ex-executivo Carlos Padilha. "Flávia, fecha com o Sérgio e Paula e envia pen drive ao MG como solicitado. Posiciona por favor", diz a mensagem. O arquivo a que Padilha se refere mostrava que o saldo acumulado de cartas VPC falsas já chegava a mais de R$ 3 bilhões em julho de 2019, segundo a investigação.

Ex-diretores fizeram contato com bancos para esconder operações de crédito. O MPF cita que os bancos Santander, HSBC e Itaú informaram à auditoria a existência das dívidas decorrentes das operações de risco sacado.

Para contornar os riscos decorrentes da descoberta pelos auditores de dívidas não contabilizadas, os investigados entraram em contato com as instituições financeiras e, sobre falso pretexto, solicitaram que as informações verídicas sobre as dívidas decorrentes de operações de risco sacado fossem "retificadas".
MPF em parecer sobre o caso Americanas

Histórico de lançamentos era alterado para driblar a auditoria. Dentre outras medidas para dificultar o trabalho da auditoria estavam: aumento forçado de linhas no sistema, já que quanto mais fossem as linhas, mais difícil seria auditá-las; lançamentos fraudulentos em valores menores para direcionar a seleção dos valores "reais", uma vez que os auditores costumam selecionar os valores mais expressivos; alteração dos históricos de lançamentos cuja descrição poderia chamar a atenção dos auditores.

Balanço era elaborado com base nas expectativas do mercado, a fim de manipular o preço das ações. O grupo elaborava periodicamente um arquivo denominado verde/vermelho com as expectativas de analistas de mercado para os resultados das companhias. As células em vermelho eram as expectativas que não estavam sendo atingidas pela empresa. "Com base nisso, os gestores faziam ajustes ideologicamente falsos em seus balanços para que os números se aproximassem das previsões do mercado", diz o MPF.

As discussões sobre as expectativas do mercado aparecem em diversas mensagens entre os ex-executivos. Em uma delas, a executiva Flávia Carneiro pergunta a Fabien Picavet qual seria o crescimento considerado bom. "Oi! Qual seria o crescimento ideal? Igual tri anterior?", pergunta Carneiro. Ao que Fabien Picavet responde: "Mais. Aceleração... 10% seria lindo".

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Diálogos reproduzidos em parecer do MPF
Diálogos reproduzidos em parecer do MPF Imagem: Reprodução/Parecer MPF

Venda de ações e ocultação da fraude

Após a divulgação de que empresa teria nova gestão, ex-executivos correram para vender ações. Em agosto de 2022 as Americanas anunciaram que Sérgio Rial, assumiria o comando da varejista em janeiro de 2023. Juntos, onze envolvidos no esquema venderam R$ 288 milhões em ações da empresa entre 2022 e janeiro de 2023, sendo que a maior parte das vendas ocorreu após julho de 2022As vendas mais expressivas foram feitas pelo ex-CEO Miguel Gutierrez, que vendeu R$ 171,8 milhões em ações, Anna Saicali vendeu R$ 59,6 milhões, e José Timotheo de Barros, que vendeu R$ 20,7 milhões.

30 ideias para esconder o rombo do novo CEO. Após o anúncio da mudança na gestão, o grupo pensou em formas de esconder o rombo. Foram levantadas 30 ideias, dentre elas a de atribuir perdas a um ataque cibernético sofrido pela B2W. Depois, o grupo levantou os riscos e as necessidades de documentação para os ajustes fraudulentos. A versão final dos números foi apresentada a Sérgio Rial em 27 de dezembro de 2022.

Diálogos reproduzidos em parecer do MPF
Diálogos reproduzidos em parecer do MPF Imagem: Reprodução/Parecer MPF

Um dos executivos não se dispôs a manter aquela narrativa. Segundo o MPF, o executivo Marcelo Nunes sugeriu a André Covre, novo diretor financeiro da empresa, que usasse como referência os números do balanço de setembro, mais fiéis à realidade. A partir daí Rial e Covre tomaram conhecimento da fraude.

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O que acontece agora

As investigações sobre o caso continuam. O inquérito da Polícia Federal segue aberto. A CVM também mantém diversos processos abertos sobre o caso. As investigações contam com acordos de colaboração premiada firmados por dois ex-executivos: Fávia Carneiro e Marcelo Nunes.

A PF cumpriu mandados de busca e apreensão contra 14 ex-executivos da empresa. São eles: Miguel Gutierrez, Anna Christina Soteto, Anna Saicali, Carlos Eduardo Padilha, Fabien Picavet, Fabio Abrate, Jean Pierre Ferreira, João Guerra Duarte Neto, José Timotheo de Barros, Luiz Augusto Henriques, Marcio Cruz Meirelles, Maria Christina do Nascimento, Murilo dos Santos Correa e Raoni Lapagesse Franco.

Havia mandados de prisão para dois ex-diretores. Considerado um dos principais envolvidos, Miguel Gutierrez chegou a ser preso na Espanha, onde vive, mas foi liberado. Segundo sua defesa, ele jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude. O mandado de prisão contra Anna Saicali foi convertido em medida cautelar. Ela estava em viagem em Portugal e teve seu passaporte apreendido ao retornar ao Brasil. Sua defesa diz que ela "jamais participou de qualquer ilegalidade".

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