Opinião

Análise: Os fundos de investimento na reforma tributária

No direito privado, há diversas formas de tratar as comunhões de interesse. Uma das formas é a pessoa jurídica: sócios realizam os interesses comuns por meio da sociedade, e associados, por meio da associação. É a maneira por assim dizer mais robusta, por implicar a criação de um novo sujeito de direito, dotado de patrimônio e interesses jurídicos próprios.

No extremo oposto, na maneira menos robusta de tratamento das comunhões de interesses pelo direito privado, encontra-se o dado aos debenturistas subscritores da mesma série de debêntures emitida por uma companhia. Nessa maneira de pouca robustez, a curadoria dos interesses comuns dos debenturistas é simplesmente confiada a um agente fiduciário (em geral, uma instituição financeira). Aqui, não se cria nenhum sujeito de direito novo, não se institui patrimônio especial, não há CNPJ.

Entre um e outro extremo, o direito privado oferece aos agentes econômicos um cardápio de opções que inclui as sociedades em conta de participação (usadas nas incorporações imobiliárias) e os condomínios (presentes no ramo dos shopping centers).

Os fundos de investimento são uma das formas de tratamento de comunhões de interesse pelo direito privado. Na escala de robustez esboçada, os fundos de investimento correspondem a um tratamento mais próximo ao dado à comunhão de interesses dos debenturistas.

Os fundos de investimento são definidos legalmente como "comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial" (CC, art. 1.368-C). Quer dizer, os cotistas são coproprietários de bens ou direitos e, para a administração e gestão destes, eles contam com os serviços prestados por agentes regulados, sujeitos à fiscalização do BCB ou da CVM. Os "fundos" são esses bens ou direitos de que os cotistas são titulares em condomínio e estão confiados à administração e gestão de profissionais especialistas.

O direito tributário nem sempre está constrangido pelo direito privado, e não há dúvida que pode atribuir a um ente despersonalizado a condição de contribuinte. É o que faz, por exemplo, desde 1985, com as sociedades em conta de participação. Mas, ao reconfigurar para fins de tributação o que foi configurado de um determinado modo pelo direito privado, o legislador deve agir de modo criterioso, sopesando bem as consequências do descompasso que introduzirá nas categorias jurídicas.

Atualmente, os fundos não são tributados pelo PIS, COFINS e ISS, exatamente por se replicar, no plano do direito tributário, o mesmo tratamento dado pelo direito privado a essa forma de comunhão de interesses. Os cotistas pagam os seus impostos pelos ganhos do investimento feito em comunhão, assim como os administradores e gestores pagam os deles pelos serviços prestados à comunhão de interesses. Os fundos em si não são tributados.

A reforma tributária, contudo, está discutindo a imposição aos fundos de investimento dos novos tributos IBS e CBS. Essa projetada reconfiguração tributária do que foi diferentemente configurado pelo direito privado trará impactos negativos, que desaconselham a imposição. Os fundos não prestam nenhum serviço aos seus cotistas, por serem nada mais que um conjunto de bens e direitos da titularidade comum deles administrados e geridos por profissionais. Onerar os fundos com os novos tributos é impor custos irracionais ao seu funcionamento.

Não é necessário insistir na grande importância dos fundos de investimento tanto no mercado de crédito como no mercado de capitais. Tampouco é preciso relembrar a imprescindibilidade desses mercados para o desenvolvimento econômico. A securitização, a dívida corporativa, a negociação de carteiras de incerta recuperação e boa parte do investimento em valores mobiliários e títulos públicos são hoje fortemente dependentes dos fundos. Qualquer imposição tributária descompassada com a sua formatação de direito privado prejudicará esses segmentos cruciais do mercado de crédito e do mercado de capitais.

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Em suma, na reforma tributária, os fundos de investimento devem continuar sujeitos à disciplina atual, isto é, não devem ser devedores dos novos tributos IBS e CBS, sob pena de arrefecer o acesso à liquidez para pequenas, médias e grandes empresas.

Fábio Ulhoa Coelho é advogado, doutor em direito e professor titular de filosofia do direito, direito comercial e empresarial da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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