• Flavia Guerra* | Imagem divulgação
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A importância das residências para as narrativas cinematográficas (Foto: Divulgação)

Cena do longa sul-coreano Parasita, no qual a casa de arquitetura contemporânea e minimalista chama a atenção até mesmo dos espectadores mais distraídos, tamanha a força de sua presença na narrativa sobre a frágil relação entre patrões e empregados

Poucas vezes no cinema contemporâneo o cenário doméstico teve papel tão decisivo em uma trama como em Parasita (2019). O longa que o sul-coreano Bong Joon-ho construiu com maestria arquitetônica não só conquistou Cannes e o Oscar como também, o mais difícil e notável, o imaginário do público em todo o mundo.

Unir o cinema de autor como ritmo hollywoodiano, numa montanha-russa que vai da comédia ao drama, do horror à tragédia, deu certo graças a uma forte espinha dorsal: a mansão, que tenta, em seus traços concisos, transmitir uma vida ascética e harmoniosa. É em seus amplos ambientes, em suas escadas que delimitam mundos, que as tensões se colocam – e o contraste como cortiço dos empregados no subúrbio de Seul torna a força narrativa do filme ainda maior.

O cinema já nasceu mostrando, investigando e até invadindo as moradas de seus protagonistas. Da observação da realidade e de uma simples refeição em família em O Almoço do Bebê (1895), dos irmãos Auguste e Louis Lumière, ao minimalismo nômade, mais imposto do que escolhido, de Nomadland (Chloé Zhao, 2020), melhor filme no Oscar 2021, a casa, funcional ou não, aconchegante ou opressora, é elemento crucial para contar em imagens a própria história da humanidade.

Em sua fase áurea, nas décadas de 1930 e 40, que se estendeu até os anos 1960, Hollywood preferiu a artificialidade das ambientações erguidas em estúdios, locais controlados que permitiam a movimentação das então imensas e pesadas câmeras. Essa época gerou obras-primas e os primeiros clássicos de Alfred Hitchcock, que já se revelava um artífice habilidoso da dinâmica entre cenários, luz, sombras e o estado psicológico de seus personagens.

Na Europa, foi o neorrealismo italiano que, nos pós-guerra, levou o cinema para as ruas e para o interior dos lares, para a vida sem maquiagem de um povo que lutava para sobreviver. Nas produções mais emblemáticas do movimento, como Roma, Cidade Aberta (Roberto Rossellini, 1945), Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) e Rocco e Seus Irmãos (Luchino Visconti, 1960), o espaço pobre e exíguo das habitações transparecia o sonho de dignidade. O cinema, e a casa no cinema, nunca mais seriam os mesmos: essa vertente segue influenciando gerações de cineastas que buscam na granulação do real a verdade que muitas vezes só se consegue na ficção.

OS SUBÚRBIOS EM CENA

A partir do final dos anos 1960, as películas americanas, com a chamada Nova Hollywood, transbordaram definitivamente para as ruas. Mais adiante, entraram na intimidade daqueles que, desde o boom econômico das décadas de 1940 a 1960, encantavam-se com eletrodomésticos e facilidades modernas.

A almejada residência suburbana, simples porém ampla para abrigar um casal com muitos filhos e seus ideais de prosperidade, foi retratada tão à exaustão que não é preciso ter pisado nos Estados Unidos para criar uma memória afetiva, ou aflitiva, da vizinhança de Edward Mãos de Tesoura (1990), de um Tim Burton em sua melhor versão ao conciliar o esdrúxulo e a pretensa normalidade burguesa. A casa de E.T. – O Extraterrestre (Steven Spielberg, 1982), assim como o amor e as carências de uma família dos anos 1980, estará para sempre na lembrança de todo cinéfilo. Sem esquecer que o teto que acolhe também aterroriza: as opressões e neuroses dessa mesma sociedade se manifestam nos fantasmas de Poltergeist (1981), escrito por Spielberg com Mark Victor e Michael Grais.

SANGUE LATINO

Já a produção nacional bebe sem restrições da tradição neorrealista. A moradia, precária ou apenas fruto de uma construção possível, representa também uma alegoria da desigualdade. Com os casebres de Cinco Vezes Favela (vários diretores, 1962) ou a cozinha do casal operário de Eles Não Usam Black-Tie (Leon Hirszman, 1981), nossa dureza adquiriu volume e cor.

Anos mais tarde, a casa de subúrbio melancólica, em uma São Paulo que não acolhe sua juventude, é decisiva em Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008), e o endereço que personifica nossas frágeis dinâmicas sociais em Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015) ganha nuances ainda mais atuais na mansão na qual os empregados de Três Verões (Sandra Kogut,2018) se vêem abandonados por seus patrões corruptos.

A importância das residências para as narrativas cinematográficas (Foto: Divulgação)

Cozinha do longa Julieta (2016), de Pedro Almodóvar (Foto: Divulgação)

Nesta já extensa lista de referências, um nome desponta como mestre em traduzir em cores e feições o estado de espírito não só de seus personagens, mas de um país em transformação. Pedro Almodóvar nos trouxe um universo  de apartamentos madrilenhos em que a revolução de costumes tomou conta de uma nação por décadas amordaçada na palidez da ditadura franquista. A explosão de liberdade se imprimiu nas histórias de heroínas complexas, vivazes, à beira de um ataque de nervos em cozinhas onde o carmim e o turquesa convivem com o roxo, o laranja e papéis de parede ultracoloridos.


À medida que amadureceu, o espanhol propôs não só tramas mais sóbrias como um equilíbrio de tons, texturas e contornos. A cozinha da fotógrafa Janis (Penélope Cruz), de Mães Paralelas (2021), e a do cineasta Salvador Mallo (Antonio Banderas), de Dor e Glória (2018), ainda exibem o verde-água e o vermelho, mas suas formas e iluminação surgem mais limpas. Barroco ou minimalista, assim como Almodóvar, o cinema seguirá fazendo das moradias uma extensão do universo interior de quem vive nelas. A arte de esculpir o tempo, como sempre defendeu o cineasta russo Andrei Tarkovski, é também esculpi-lo com o cenário, principalmente doméstico, em que moramos personagens – e, por que não, a subjetividade de um povo e de uma época.

* Jornalista especializada em cinema, documentarista e editora do podcast Plano Geral