• Ana Paula Orlandi | Foto Ruy Teixeira | Imagens Kátia Coelho/divulgação (Diário de Viagem), Hélène Louvart/divulgação (Todos os Mortos) e divulgação
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Casa de cinema: entenda como são produzidos os cenários residências dos filmes  (Foto: Ruy Teixeira)

A loja de antiguidades Coisa de Época, em São Paulo, costuma ser procurada por diretores de arte, cenógrafos e produtores de objetos em busca
de itens vintage para comprar ou alugar, a fim de compor ambientações específicas para filmagens

Aos 65 anos de idade, Clara se recusa a vender para uma grande construtora seu apartamento, em um prédio antigo de Recife. A luta da jornalista (interpretada por Sônia Braga na parte contemporânea da trama) para evitar que o lugar onde viveu tantas histórias seja demolido e ceda espaço a um arranha-céu é ponto central do enredo de Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016), que concorreu à Palma de Ouro em Cannes. “Clara é a última moradora daquele edifício e sua permanência torna-se um ato de resistência”, diz Thales Junqueira, que assina a direção de arte da película com Juliano Dornelles. “Não por acaso, o título refere-se ao nome do prédio na ficção.”

Aquarius não é exemplo isolado de filme em que a casa exerce papel essencial na narrativa. Basta lembrar de clássicos como Meu Tio (Jacques Tati, 1958), O Anjo Exterminador (Luis Buñuel, 1962), ou mesmo de obras recentes, caso do sul-coreano Parasita (Bong Joon-ho, 2019), grande vencedor do Oscar de 2020, e Malcolm & Marie (Sam Levinson, 2021), rodado durante a pandemia.

“Mesmo quando não ganha protagonismo, a arquitetura é parte intrínseca do cinema. Ela é a base estrutural para a construção da cena e articulação de elementos como luz, câmera e objetos”, aponta a arquiteta, cenógrafa e diretora de arte Vera Hamburger. Em produções audiovisuais, quem cuida dessa área é justamente o diretor de arte. “A partir do roteiro, ele baliza as escolhas sobre a arquitetura e os demais elementos cênicos, delineando e orientando os trabalhos de cenografia, figurino, maquiagem e efeitos especiais”, escreve Hamburger no livro Arte em Cena: A Direção de Arte no Cinema Brasileiro (Ed. Senac São Paulo e Edições Sesc São Paulo, 420 págs.).

De acordo com ela, a escola americana inaugurou a denominação production designer em 1939, em ...E o Vento Levou, de David O. Selznick. No Brasil, essa função se incorporou ao processo de forma sistemática a partir da década de 1980. “A profissão exige uma gama de informação e expertise: é preciso entender de moda, arquitetura, decoração e design, por exemplo”, completa Marcos Pedroso, que há três décadas atende demandas de teatro, cinema e TV, e acaba de participar do inédito Relato de um Certo Oriente, de Marcelo Gomes, inspirado no livro homônimo escrito por Milton Hatoum.

EM BUSCA DA LOCAÇÃO PERFEITA

Pedroso também integrou a equipe de Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015), cuja direção de arte divide com Thales Junqueira. No drama, a empregada doméstica Val (Regina Casé) mora com os patrões. O filho adolescente do casal se prepara para o vestibular. A suposta harmonia do núcleo se rompe com a chegada de Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, que troca Pernambuco por São Paulo para tentar uma vaga na faculdade de arquitetura. “A moradia é um elemento fundamental por ser palco do conflito de classes abordado pela trama”, observa. “Em uma das cenas mais emblemáticas, Val caminha na piscina vazia e decide mudar de vida e ir morar com a filha na periferia.”

Não foi fácil encontrar a locação. “O roteiro pedia uma construção modernista, com piscina e jardim. Após muita procura, achamos uma alternativa no bairro do Morumbi [em São Paulo], e os proprietários toparam alugar para a produção. A área externa era perfeita, sem contar que tinha espaço suficiente para receber o time de filmagem. Entretanto, a residência era rústica, com telhado de chalé suíço”, recorda Pedroso. O jeito foi utilizar recursos cenográficos. Assim, entre outras providências, pintaram-se de cinza as paredes da sala para simular placas de concreto.

Dificuldade semelhante enfrentou Juliana Lobo, diretora de arte de Todos os Mortos (Marco Dutra e Caetano Gotardo, 2020), que concorreu ao Urso de Ouro no Festival de Berlim daquele ano. O enredo se passa em 1899 e mostra a relação entre duas famílias – uma branca e outra negra – 11 anos após a abolição da escravatura no Brasil. “Nossa primeira opção era um imóvel de 1925, mas havia criança no elenco e o dono não possuía os documentos necessários para que o juiz de menores autorizasse o início dos trabalhos”, lembra.

Casa de cinema: entenda como são produzidos os cenários residências dos filmes  (Foto: Hélène  Louvart/divulgação )

Ana (vivida por Carolina Bianchi), personagem de Todos os Mortos, que trata do racismo estrutural no Brasil – um caminhão de terra ajudou a transformar a área externa da locação revestida de cacos de cerâmica em um jardim, elemento crucial na trama (Foto: Hélène Louvart/divulgação )

Durante a Jornada do Patrimônio Histórico, da Secretaria Municipal de Cultura, a equipe localizou uma casa da década de 1910 no centro de São Paulo. “Só que a área externa tinha um piso de caquinhos de cerâmica e o roteiro precisava de um jardim, onde uma personagem pudesse enterrar sacas de café em uma das principais passagens. A solução: construir uma espécie de tanque de areia do tamanho do quintal e enchê-lo de terra”, descreve Lobo.

Nesse processo, não aparecem apenas obstáculos técnicos. “Lidamos com um universo simbólico de valor inestimável, que é o lar das pessoas. Quando usamos uma locação habitada, é preciso transferir os moradores para um hotel e, normalmente, reconfigurar tudo”, relata Junqueira, que também responde pela direção de arte de Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) e Divino Amor (Gabriel Mascaro,2019). “Já deparei com situações em que os proprietários ficaram chateados ao ver que não aproveitaríamos a decoração original. Tem gente que leva para o lado pessoal, acha que não gostamos, mas não é nada disso. A ambientação deve refletir a personalidade e o estilo de vida do personagem.”

“É praticamente impossível encontrar uma locação pronta. Em alguns casos, opta-se por rodar em estúdio, embora seja uma escolha mais cara”, observa Hamburger. “Há quem diga que assim se perde o aspecto natural, a verdade, mas, por outro lado, nos livramos de intempéries, de barulhos indesejados e da reclamação dos vizinhos, por exemplo”, pondera. Às vezes a complexidade técnica exige essa medida, como na comédia romântica De Onde Eu Te Vejo (Luiz Villaça, 2016), em que o casal interpretado por Denise Fraga e Domingos Montagner se separa após 20 anos. Ele, então, se muda do Edifício Louveira, projeto de João Batista Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, em Higienópolis, onde vivia com a mulher e a filha, para o lado oposto da rua. “Reproduzimos os dois apartamentos em estúdio, para que fosse possível captar a interação dos atores entre os prédios. Modelamos as fachadas digitalmente na pós-produção”, explica Hamburger.

Casa de cinema: entenda como são produzidos os cenários residências dos filmes  (Foto: Divulgação)

Os dois apartamentos onde vive o ex-casal Ana Lúcia (Denise Fraga) e Fábio (Domingos Montagner) na comédia romântica De Onde Eu Te Vejo existem na vida real, mas foram reproduzidos em estúdio para facilitar o processo de filmagem (Foto: Divulgação)

OLHO VIVO

Outro elemento relevante para simular o ambiente são os objetos. “De forma subjetiva, eles contam muito sobre os personagens, revelam aspectos como hábitos e gostos”, aponta Juliana Lobo. Prova disso está no inédito Diário de Viagem (Paula Kim, 2021), no qual assina a direção de arte. Para montar a residência de classe média alta da protagonista, uma adolescente com transtorno alimentar que mora com os pais na capital paulista, Lobo especificou móveis com tampo de vidro, uma cortina que está sempre cerrada e iluminação fria. “A ideia foi construir um lugar opressor, que não abraçasse aquela menina”, justifica. “Ao mesmo tempo, o local precisava evocar a década de 1990, quando acontece a história. Compramos a maioria dos itens em bazares de caridade.”

Casa de cinema: entenda como são produzidos os cenários residências dos filmes  (Foto: Kátia Coelho/divulgação)

A adolescente Liz (Manoela Aliperti) e os pais, interpretados por Virginia Cavendish e Eucir de Souza, no longa Diário de Viagem, cuja casa busca evocar um ambiente opressor com estética dos anos 1990 (Foto: Kátia Coelho/divulgação)

“É um trabalho de garimpo e pesquisa”, define Clissia Morais, produtora de objetos há três décadas. Oitenta por cento das peças que costuma utilizar em cena são alugadas em acervos especializados para produções audiovisuais, lojas de decoração, antiquários, brechós e bazares, sobretudo na cidade de São Paulo. Mas não apenas. Para compor os cenários de Desmundo (Alain Fresnot, 2003), ambientado no Brasil do século 16, ela estima ter percorrido, em três meses, cerca de 100 mil km entre os estados de São Paulo, Minas Gerais e Goiás no encalço de móveis, adornos e utilitários que remetessem à estética colonial. “Como o filme transcorre antes do advento da fotografia, que surge apenas no século 19, fiz a pesquisa de objetos em telas de pintores como [Pieter] Bruegel [1525-1569] e [Hieronymus] Bosch [c. 1450-1516], retratos do cotidiano da época.”

VIDA REAL

No caso de Era o Hotel Cambridge (2016), misto de documentário e ficção dirigido por Eliane Caffé sobre uma ocupação no centro de São Paulo, alguns objetos vieram do “shopping rua”. A expressão, comum entre os integrantes dos movimentos de luta por moradia, designa o “garimpo” de mobiliário e demais artigos descartados nas vias urbanas.Outra parte da lista, como mesas e fichários, veio de ecopontos da prefeitura de São Paulo. “É impressionante o tanto de coisa útil jogada no lixo”, constata a arquiteta Carla Caffé, que conduziu a direção de arte e a produção de objetos do longa-metragem com seus alunos da Escola da Cidade, faculdade de arquitetura e urbanismo no centro paulistano.

De acordo com Carla, que já fez a direção de arte de películas como Central do Brasil (Walter Salles, 1998), a equipe considerou duas necessidades simultâneas: as da ocupação, situada em um hotel abandonado, e as do roteiro. “Após a filmagem, o teatro, um dos cenários requeridos pela história e que tinha boa iluminação, se tornou uma oficina de costura para os moradores. Já a lan house deu origem a uma biblioteca comunitária”, relata ela, que reportou a experiência no livro Era o Hotel Cambridge: Arquitetura, Cinema e Educação (Edições Sesc São Paulo, 249 págs.). “Por meio de suas próprias percepções, os alunos puderam conhecer o que acontece nos espaços internos de uma ocupação e como o ofício da arquitetura se aplica às questões habitacionais que assolam a maioria das cidades contemporâneas. Foi, sem dúvida, um grande aprendizado”, conclui.