• 20/08/2020
  • POR NICOLE TOMAZI*
Atualizado em

Esta coluna nasce da minha vontade de apresentar um assunto que faz parte da minha vida desde sempre e que abraça uma grande parcela da população brasileira: a cultura feita à mão – nome que batiza esse espaço de comunicação que acaba de nascer, aqui na Casa Vogue. Quinzenalmente, abordarei pontos que considero importantes e que venho trabalhando nestes 15 anos de atuação profissional e de pesquisa acadêmica.

Qual a diferença entre artesanato, arte e design e como essas áreas se entrelaçam (Foto: Sergio Cabral)

Essa sou eu, bem moleca e feliz, na oficina de casa (Foto: Sergio Cabral)

Minha intenção é clarear os caminhos para que descubramos juntos o universo de texturas, cheiros e identidades deste nosso Brasil. Um jeito de cuidar do que é nosso, valorizar nossa cultura e principalmente dar protagonismo aos inúmeros personagens, produtos e técnicas oriundas das mãos da nossa terra.

Começo trazendo um tema bastante discutido por pesquisadores e especialistas. Se você fizer uma busca rápida, encontrará muitos artigos e reportagens que listam, ponto a ponto, as diferenças entre o artesanato, a arte e o design – e o meu objetivo aqui é falar disso da maneira mais simples possível.

Desde o início das civilizações os seres que nelas habitavam eram, antes de mais nada, fazedores. Nossos ancestrais sobreviveram ao longo de toda a história da humanidade por terem a habilidade de construir, executar, fabricar – desde utensílios até suas próprias casas. Minha família, por exemplo, é composta por artesãos e artesãs, os homens na madeira, as mulheres nos fios e tecidos. Construíam e constroem coisas pra uso próprio, mas também para seu sustento. Tenho o privilégio de poder ter sido artesã ainda criança, muito antes de me tornar designer.

Hoje, habitamos um mundo onde se constrói muito pouco com as mãos, porém é possível ter acesso a tudo o que precisamos – e, inclusive, a tudo o que acumulamos sem precisar. Ter consciência das semelhanças e diferenças entre áreas nos auxilia a sermos mais vigilantes, mais críticos e também mais atuantes. Não adianta nos movimentarmos em uma estrada sem sabermos para onde estamos indo. Isso serve para quem produz, para quem atua e para quem compra.

Qual a diferença entre artesanato, arte e design e como essas áreas se entrelaçam (Foto: Acervo pessoal/Nicole Tomazi)

Produção da coleção Imigrante, que lancei em 2017, em vime e metal. (Foto: Acervo pessoal/Nicole Tomazi)

Eu, por exemplo, por muitas vezes me senti perdida ao olhar um produto e não conseguir entender onde ele se encaixava. Por causa disso resolvi pesquisar e estudar e hoje consigo ter uma visão ampla e, inclusive, abraçar o desconhecido que muitas vezes se apresenta em frente dos meus olhos.

Estas três áreas se relacionam entre si, criando espaços estranhos entre elas, espaços onde tudo se mistura. É como quando estamos na beira da praia: se estamos na areia, sentimos seus grãos em nossos pés, se estamos flutuando no mar, sentimos a água envolvendo nosso corpo. Mas e quando estamos ali, na primeira onda? Pés na areia, água batendo nos joelhos, estamos em um terceiro lugar, onde dois universos se interceptam. Assim é quando arte, artesanato e design se encontram.  Mas em que momento sabemos que estamos em um ou em outro?

Qual a diferença entre artesanato, arte e design e como essas áreas se entrelaçam (Foto: Acervo pessoal/Nicole Tomazi)

Minha carteirinha de artesã, emitida com muito orgulho em 2007, quando comecei a trabalhar e pesquisar o Design e Artesanato (Foto: Acervo pessoal/Nicole Tomazi)

O artesanato faz parte da manifestação cultural de um povo. Dentro dele estão todos os produtos resultantes da ação das pessoas em um território, seja por conta de uma matéria-prima, do clima ou ainda do folclore de um lugar. Este resultado aparece em utensílios, objetos decorativos e em tudo aquilo que este povo, ao habitar um lugar, produz a partir dele. Como uma manifestação cultural, o artesanato carrega características identitárias passadas de geração em geração como algo vivo, em constante mutação. Mesmo sendo totalmente ligado à ancestralidade, o artesanato está suscetível às transformações que invariavelmente acontecem no decorrer do tempo, como um reflexo das mudanças do povo que o produz e do território que habita.

O artesanato é feito por artesãos espalhados por todo o Brasil, que criam e produzem com suas próprias mãos os produtos particulares de sua cultura. Trabalham muito em grupos e se relacionam intimamente com as características do lugar onde vivem. Sua produção é de baixa escala, apresentando pequenas diferenças entre peças semelhantes, justamente por terem sido feitas à mão, uma a uma.

O artesão se sustenta com a comercialização de sua produção, que muitas vezes se concentra apenas na sua região, passando por todas as questões de desvalorização do trabalho manual e da própria cultura (isso é um assunto importante que merece um outro artigo).

Véio (Foto: João Liberato)

Obra do artista sergipano Véio, que cria esculturas de figuras antropomórficas com galhos de madeira (Foto: João Liberato)

Mas aí surge o Véio e pronto: pés na areia, água nos joelhos. Ernesto Neto, a mesma coisa.

Embora usem técnicas artesanais, criam peças de arte, vendidas a preço de arte. Colocam sua expressão acima da própria produção e usam a técnica como suporte para gerar em nós sensações e emoções.

A arte se comporta desta maneira. Não existe uma demanda de uso para que ela ocorra, mas sim a necessidade de expressão do próprio artista. Ela pode estar ligada diretamente ao território e à cultura, porém reflete muito mais o sentimento de quem a faz a respeito de sua observação de mundo. Os artistas têm maior liberdade em relação as matérias-primas, são desprendidos da necessidade de utilizar somente os recursos a que têm acesso, podendo ir ao limite para materializar suas intenções.

Ernesto Neto ganha mostra individual na Pinacoteca (Foto: Deco Cury)

Ernesto Neto na exposição Sopro, exibida em 2019 na Pinacoteca (Foto: Deco Cury)

Em relação aos artesãos, os artistas são muito mais solitários na criação e produção de suas peças, porém seu alcance é bem maior do que sua própria comunidade. A arte é mais global que o artesanato, mesmo quando representa características específicas de um lugar. Isso não quer dizer que os artistas não têm papel social territorial, pelo contrário, sua postura em muitas vezes é muito mais política, conseguindo apresentar questões sociais importantes através de sua produção.

LONDON, ENGLAND - OCTOBER 11:  Chinese Artist Ai Weiwei holds some seeds from his Unilever Installation 'Sunflower Seeds'  at The Tate Modern on October 11, 2010 in London, England. The sculptural installation comprises 100 million handmade porcelain repl (Foto: Getty Images)

A instalação Sunflower Seeds (sementes de girassol, em português), de Ai Weiwei, foi inaugurada em 2010 no Tate Modern de Londres. A obra também integrou a exposição Raiz, mostra solo da trajetória do artista que esteve no Brasil em 2018, na Oca, em São Paulo, com curadoria de Marcello Dantas (Foto: Getty Images)

Um exemplo disso é Ai Weiwei. Em muitas de suas obras ele aborda questões que fazem parte de sua história e que estão presentes nos dias atuais transformando suas ideias em peças de madeira, porcelana e plástico, entre outros materiais. Artesãos produzem algumas de suas obras, como a instalação Sunflower Seeds feita com sementes de girassol de porcelana, por exemplo.

Diferente de uma produção de design, estas peças não são seriadas e na maioria das vezes não têm um uso específico, além de serem obras de arte – o que já é bastante coisa. Este é um ponto que por muitas vezes foi difícil entender, até que, em uma conversa com o curador Marcello Dantas, escutei uma frase que reverbera em mim até hoje: “A arte é o design sem função, o design é a arte com função”.

A maneira como o design foi instituído no Brasil – chamado inicialmente de Desenho Industrial – foi com o objetivo de enaltecer essa premissa funcional. O ensino do design surgiu com a herança da escola alemã, extremamente tecnicista e com um propósito claro: servir a indústria para a produção em massa. Foi então que demos as costas a tudo que era manual, considerando apenas os produtos industriais como modelo de qualidade e de design.

Mas aí vêm os Irmãos Campana e de novo: pés na areia, água nos joelhos. Sua produção mistura arte, design e artesanato.

Aqui cabe uma história curiosa: no início da minha carreira, eu era eliminada de todos os concursos de design que me inscrevia. A justificativa? Por terem partes artesanais, meus produtos não eram considerados produtos de design. Porém – e ainda bem –, a roda girou, o mundo evoluiu, o design se abriu e hoje temos atuações mais empáticas e sociais que possibilitam, por exemplo, o surgimento do Design e Artesanato e também do chamado Design Arte. Esta liberdade permite que existam diferentes manifestações dentro de uma mesma área, coexistindo e servindo a propósitos distintos.

Em todos estes séculos, sempre existiram aqueles que criavam movidos pela demanda de uso e aqueles que criavam unicamente pela necessidade de se expressar. Hoje podemos inclusive misturar estas duas coisas. Cabe a nós escolhermos onde almejamos estar, o que desejamos consumir, o que queremos valorizar.

Pés na areia, água nos joelhos.
Coloca o coração e a mente.
Observa.
Dá pra saber, dá pra sentir.

*Nicole Tomazi aprendeu bordado, crochê e tricô com sua avó, quando era criança. O forte vínculo com o território, a cultura local, a ancestralidade e o feminino são a base do seu trabalho e da sua pesquisa pessoal. No ano de 2007 decidiu atuar junto a grupos de artesãos unindo design e artesanato em suas produções, tornando-se uma voz atuante na área. Seus produtos autorais já foram expostos na Semana de Design de Milão em 2009, 2010, 2012, 2013 e 2015, sendo finalista do Salone Satellite por duas vezes, apresentando ao mundo o artesanato brasileiro em suas criações. Ganhadora de prêmios como Casa Vogue Design e Planeta Casa, destaca-se por unir teoria e prática, pesquisando incansavelmente maneiras de valorizar a cultura do trabalho manual do país. Formada em Arquitetura e Urbanismo é Mestra em Design com ênfase em Artesanato, Território e Patrimônio e atualmente forma a dupla Nicole Tomazi + Sergio Cabral.