• 29/08/2018
  • Texto Beta Germano | Fotos Loiro Cunha
Atualizado em

“Fica tranquila, ele é muito mais feliz do que a gente, que tem tudo”, diz Antônia, integrante da Associação das Artesãs de Várzea Queimada, o vilarejo situado no município de Jaicós, interior do Piauí. Ela fala sobre José João, um senhor que ficou cego após uma pedrada no olho. O povoado onde moram é um dos pontos de menor Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil, uma região que sofre com o chamado balanço hídrico negativo – a quantidade de chuva que cai é menor do que a água que evapora, o que significa que a área está em processo de desertificação. Pouquíssimas casas possuem esgoto ou água encanada, e a terra, castigada pelo sol, não dá frutas e verduras essenciais para uma nutrição saudável. Mas, como ela mesma diz, Antônia tem tudo: força, fé, alegria, orgulho e amor pela sua comunidade. Ela é só uma, dentre tantos que, no mês passado, receberam Marcelo Rosenbaum - editor convidado da nossa edição de setembro -, o artista Jonathas de Andrade, Aloysio Cunha de Castro (arquiteto do Atelier Oï) e a equipe da Casa Vogue para criarmos, todos juntos, a coleção de luminárias Toca de Luz. Ao compartilharem seus saberes ancestrais, nos ensinaram sobre resistência, uma lição de vida para quem vive na fartura a reclamar.

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A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

As artesãs de Várzea Queimada desfiam e trançam a palha da carnaúba ao redor de Marcelo Rosenbaum – em sentido horário, a partir do alto, à esq., Silvana, Josefa, dona Inês, Maria do Rosário, Cecília, Maria Pia, Maria das Mercês e Maria Benta

A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

loysio Cunha de Castro, do Atelier Oï, aprende a tecer com dona Luiza

A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

Um dos burros que ajudam a levar as folhas de carnaúba até o local onde são estendidas para a secagem


Foi em 2011 que Marcelo começou a trabalhar com as artesãs locais que trançavam a palha seca de carnaúba (palmeira típica do Nordeste brasileiro), no capítulo mais frutífero de seu projeto A Gente Transforma. Muito antes, num passado sem registro formal, o sogro de dona Luísa, precursora entre as trançadoras de palha de Várzea Queimada, falava aos conterrâneos: “Vocês plantem carnaúba, porque vem um tempo aí em que a carnaúba vai dar dinheiro”. “Ele tinha umas profecias”, conta ela. “Ninguém nunca pensou que a palha teria essa saída.”

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A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

Marcelo Rosenbaum e Jonathas de Andrade estudam formas possíveis para uma luminária

A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

Um campo de carnaúbas e suas folhas ainda verdes, que secarão sob o sol do sertão

O segredo do sucesso da iniciativa está no olhar de Marcelo, atento ao ser humano. Valorizando tradições e acreditando no objeto como um catalisador de memórias, ele escuta e entende as necessidades e os desejos das pessoas, para, então, atuar em conjunto com elas. Garante, assim, um elemento fundamental nessa história: a autoestima da população. Nem tudo ali, porém, são flores de mandacaru – símbolo de resistência no sertão e prenúncio de chuva. Apesar de a associação ter sido formada em 2009, antes do AGT, elas eram maltratadas quando iam a Jaicós vender suas esteiras, relata a artesã Maria do Rosário. “As pessoas chutavam a gente e jogavam nossas coisas no chão. Agora todo mundo da região nos respeita, e conseguimos comprar as nossas coisas como dinheiro do nosso esforço.” Maria Benta completa: “Antes, meu marido não me deixava trabalhar aqui... Só aceitou depois que viu a dedicação do Marcelo.”

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A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

A luminária Lua, assinada pela Casa Vogue 

A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

O estudo de luz, sombra, formas e superfícies do Atelier Oï

Certa feita, no processo de resgate da memória local, o designer encontrou, nos fundos de uma casa, um bogoió jogado num canto. O cesto para mantimentos foi o gatilho para a primeira coleção assinada por Marcelo e as artesãs. Os artefatos desenhados naquela ocasião estão, por exemplo, em lugares como o spa do Hotel Fasano de Angra dos Reis e integraram uma exposição na Luminaire Lab, em Miami, organizada pela Casa Vogue.

A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

Taissa Buescu trabalha com Maria de Fatima (à esq.) e Maria Pia (à dir.)

A história de Várzea Queimada remonta a João Raimundo Barbosa, um vaqueiro da Paraíba que casou com Joana Carvalho, filha do coronel que mandava nas terras do sertão piauiense. Juntos, iniciaram a comunidade numa região habitada por índios, expulsos pelos coronéis que trouxeram escravos negros. O resultado? Um povo mestiço com a cara do Brasil. Assim nasceu também o bogoió: um misto das tramas conhecidas pelos indígenas com a estética africana. “O pessoal do Marcelo nos ajudou a ver que nosso futuro estava no passado”, revelou seu João da Cruz, neto de Barbosa, no livro Várzea Queimada. Espírito, matéria e inspiração.

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A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

Marcelo Rosenbaum e sua luminária Tocha

A maleabilidade da palha inspirou o item inicial da nossa coleção. A luminária Cachos, concebida por Taissa Buescu, diretora de conteúdo da Casa Vogue, partiu do princípio do cesto e ganhou volume com alças de tranças sobrepostas. Coma lâmpada, lembra um ser marítimo, ainda que no sertão. Surreal? O universo dos sonhos de Salvador Dalí moveu Marcelo a propor uma família de luminárias ameboides “derretidas”, apoiadas em argolas ou forquilhas. Quando estruturada, a peça assume a forma de uma tocha. Já o tapete de palha redondo teve sua configuração simplificada para virar a luminária Lua, de Adriana Frattini, diretora de estilo da revista.

A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

Marcelo Rosenbaum, Marcilene Barbosa e Rosa Viterbo pedem proteção aos ancestrais de Várzea Queimada ao lado de uma fogueira acesa pelo grupo, próxima à Toca

O processo para atingir esses resultados foi lento e prazeroso. Ao chegarmos, o primeiro passo foi reunir todas as artesãs na Toca das Possibilidades, sede da associação. A “toca” original era uma caverna onde se escondiam negros e índios fugidos. Lá, João Raimundo Barbosa ocultou seu amor proibido, a índia Maricó (do romance nasceria o primeiro surdo-mudo da comunidade e o gene, ou “feitiço amaldiçoado”, segundo Marcelo, se espalharia pelo povoado – hoje, são mais de 40 nesta condição). A Toca foi erguida pelas artesãs, cerca de 30 voluntários e Marcelo, que acendeu uma fogueira e pediu benção aos pajés ancestrais, invocando proteção e liberdade, num ritual que se repete a cada visita sua. “Hoje sou mais grata às experiências ruins do que às boas”, diz Marcilene Barbosa, líder do grupo. “São nas dificuldades que aprendemos as lições.” “Queremos viver com dignidade”, resume Mazé, ao explicar que as conquistas foram muitas, embora ainda haja dificuldades básicas a serem enfrentadas, como passar dias “caçando” a água que raramente aparece em carros-pipa.

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A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

Júlia, Adriana Frattini, Taissa Buescu, Solandia e Beta Germano

No momento de partirmos, um último ato de generosidade: algumas crianças cercam a casa de Marcilene, onde estávamos hospedados, e Isa, de 10 anos, nos oferece um saco de castanha-de-caju torrada à mão ao lado da avó Silvana. Entrega o presente e dá mais um de seus muitos fortes abraços, sussurrando: “Volte sempre”. Voltaremos.

A incrível história dos artesãos que reinventam a palia em Várzea Queimada (Foto: Loiro Cunha)

Estudo da luminária Cachos, concebida pela equipe da Casa Vogue

TECENDO HISTÓRIA
Era 2009 quando Rosa de Viterbo Cunha, há 36 anos no Sebrae-PI, pisou pela primeira vez em Várzea Queimada. Responsável por mapear os talentos artesanais do estado, ela logo viu potencial nas mulheres que manuseavam a palha e nos artesãos que esculpiam chinelos na borracha de pneus descartados. “Eles não estavam estruturados, mas me impressionou a postura positiva e o interesse em aprender”, afirma a consultora, que passou a ensiná-los a empreender. Rosa e o Sebrae-PI trouxeram Marcelo Rosenbaum para o local. “Eu apresentei dez comunidades para ele escolher e atuar, mas confesso que direcionava para Várzea Queimada, pois gostava de ver como a comunidade se envolvia como trabalho.” Dito e feito: o projeto A Gente Transforma chegaria no povoado em 2011, mudando tudo por ali. Agora, o Sebrae-PI se faz mais uma vez presente, apoiando essa nova iniciativa junto às mulheres de Várzea Queimada, ao lado da Casa Vogue.