• 07/03/2019
  • Por Paula Jacob | Fotos Divulgação
Atualizado em
Mulheres no cinema: documentário 'Espero tua (re)volta' é uma aula de políticas sociais (Foto: Divulgação)

"Qual o tema do filme hoje? – Movimentos estudantis". É assim que começa a brilhante metalinguagem do documentário Espero tua (re)volta, dirigido por Eliza Capai. Narrado pelos personagens da própria história, o filme remonta as ocupações das escolas públicas por secundaristas, que ocorreram em 2016 contra a PEC 55 e a MP 476. Os jovens, em sua maioria, com idades entre 15 e 17 anos, protestavam contra a reorganização das escolas paulistas, proposta do então governo de Geraldo Alckmin para transformar unidades de dois ciclos em ciclos únicos (uma escola não teria Ensino Fundamental e Médio no mesmo lugar) e fechar outras tantas. O motivo principal da revolta estudantil, hoje conhecida como Primavera secundarista, era, justamente, o quanto essa proposta implicaria na vida das pessoas que ali estudavam e como ninguém diretamente afetado por essa medida foi previamente consultado.

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"Desde o começo do documentário, pude perceber o quanto a representatividade era importante para esses alunos. Na primeira ocupação que participei, na Alesp, o grupo ficou algum tempo decidindo quem falaria com as autoridades e, por fim, elegeram uma menina negra", conta a diretora em entrevista à Casa Vogue, explicando a opção de deixar o filme narrado por aqueles que estão na tela. Narração essa que parece um fio de pensamento desses alunos diante da dimensão do que estava acontecendo – "Nem eles sabiam o tamanho que o movimento tinha ganhado" –, sempre buscando explicações ou exemplos nos movimentos sociais de anos anteriores, como o MPL de 2013. O que facilita muito a compreensão do espectador diante das motivações e significados da ocupação das escolas e o valor que um ensino de qualidade tem para a população.

Mulheres no cinema: documentário 'Espero tua (re)volta' é uma aula de políticas sociais (Foto: Divulgação)

Foram mais de 200 horas de material assistido por Eliza Capai e Yuri Amaral (ambos assinam a montagem do documentário), com imagens de cobertura dos documentaristas Caio Castor e Henrique Cartaxo, além de conteúdo imagético cedido pela Globo, apoiadora do projeto. "A dinâmica frenética é intercalada com cenas de entrevistas mais paradas para dar um respiro para quem assiste, mas sem fugir da temática principal", explica Eliza. O material bruto se tornou um filme de 90 minutos, muito bem editado, com uma linha de raciocínio clara, por vezes dura e sensível, para mostrar a realidade e a complexidade desse movimento social e sua interpelação com outros tantos que aconteceram e ainda acontecem no Brasil hoje.

Mulheres no cinema: documentário 'Espero tua (re)volta' é uma aula de políticas sociais (Foto: Divulgação)

Nayara Souza uma das personagens centrais dos movimentos estudantis (Foto: Divulgação)

Para além do mote central do filme, a ocupação dos secundaristas em escolas públicas, existem outras demandas sociais que encontraram espaço dentro desses dias nas escolas: o feminismo e o racismo são os mais gritantes. Em uma das passagens de Espero tua (re)volta, vemos um grupo de meninas de idades diferentes falando sobre igualdade de gênero e raça – "Não nos ensinam isso na escola", diz Marcela Jesus, uma das narradoras da história. Para ela, a transformação dentro da ocupação foi um processo de autoconhecimento. Os fios alisados como forma de repressão social deram lugar para uma cabeça raspada e pintada de roxo. "Quando você aceita o seu cabelo, você está respeitando toda a sua ancestralidade", diz ela no filme. Em outro momento, vemos os alunos cozinhando e limpando as dependências da escola. "Todo mundo precisa ajudar. Normalmente, só vemos mulheres trabalhando na cozinha e na limpeza da escola, e isso não está certo", rebate uma das meninas diante de um comentário machista do colega, que alegava que só as meninas poderiam "trabalhar" na cozinha. "E assim, as meninas foram despertando também os meninos. A Marcela de hoje não seria a mesma se ela não tivesse ocupado a sua escola lá atrás. Quem pede escola crítica sabe o que isso significa?", reflete Eliza.

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Mulheres no cinema: documentário 'Espero tua (re)volta' é uma aula de políticas sociais (Foto: Divulgação)

Marcela Jesus, uma das personagens do documentário e a única pessoa da sua família com segundo grau completo (Foto: Divulgação)

Com a viralização midiática das ocupações, diversos professores, artistas e pensadores de outros lugares se ofereceram para criar rodas de conversa e de criação dentro dessas escolas. "Existem muitos debates simplificados sobre o que o conteúdo tratado nas escolas deve conter. Mas o ensino crítico é o oposto disso: é sobre mostrar as diversas linhas de pensamento e deixar que cada um se identifique com a sua." A complexidade dos assuntos sociais fez com que os alunos se indagassem sobre a qualidade do ensino – o que é essa escola? Por que os professores reproduzem comportamentos racistas e machistas?  

Mulheres no cinema: documentário 'Espero tua (re)volta' é uma aula de políticas sociais (Foto: Divulgação)

Não à toa, Espero tua (re)volta teve seus ingressos esgotados na sessão de 1200 lugares no cinema durante o Festival Internacional de Cinema de Berlim – Eliza Capai foi ovacionada depois da primeira exibição e recebeu o Prêmio da Anistia Internacional (AI) e da Paz na Berlinale. "A recepção foi muito boa", relembra ela. "E durante as coletivas de imprensa, era perceptível o quanto a mídia internacional queria saber sobre o que estava acontecendo no Brasil, se o filme seria veiculado por aqui e por aí vai. O que, no fim, foi incrível, porque a intenção deste documentário é ampliar os debates para temas maiores, além da educação."

Mulheres no cinema: documentário 'Espero tua (re)volta' é uma aula de políticas sociais (Foto: Divulgação)

Lucas Koka, um dos narradores de Espero tua (re)volta (Foto: Divulgação)

Ainda sem data de estreia prevista para o Brasil, Espero tua (re)volta irá circular entre os festivais de cinema e, no segundo semestre, terá uma campanha de distribuição social – a ideia da diretora é incentivar espaços de debate dentro de escolas, cineclubes, projeções na rua; basta a pessoa/professor estar interessado, fazer uma sessão gratuita para mais de cinco pessoas. Eliza Capai explica: "O acesso ao cinema já é um privilégio de poucos. Por que não mostrar esses lados da conversa para mais pessoas?". Impossível não se emocionar.

Eliza Capai, 37, Christmas 2016 (Foto: Divulgação)

A diretora de Espero tua (re)volta, Eliza Capai (Foto: Divulgação)


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