AN�LISE: Antes de Pel� e samba, Aparecida ajudou a dar uma cara ao Brasil
Para entender Aparecida precisamos despi-la.
Ela n�o nasceu com ouro nem diamantes sobre a cabe�a; n�o tinha roupas de rainha nem os t�tulos de nobreza que a consagraram no lugar mais alto da f� brasileira. Foi abusada pelos corruptos, explorada politicamente, atacada com viol�ncia e, depois, quase por um milagre, ganhou uma cabe�a nova e foi colocada num cofre blindado.
Quando foi achada, tr�s s�culos atr�s, a santinha de barro j� era a cara do pa�s que ainda nem se chamava Brasil: o material pouco nobre, o pesco�o quebrado, o nariz sem peda�os, sem a cabeleira que agora lhe escorre pelo pesco�o e sem muita perspectiva de sobreviv�ncia. Mas, aos poucos, a santinha foi ganhando fama de milagrosa. O povo come�ou a deixar-lhe doa��es cada vez maiores. A igreja acordou e abra�ou aquele culto proibido que atra�a multid�es � casa de um pescador.
Quando o imp�rio se apoderou das igrejas, corruptos indicados pelo imperador para a tesouraria da capela meteram tanto suas m�os no cofre da santa que por mais de meio s�culo faltava dinheiro at� para uma pequena reforma.
De corpo e alma, Aparecida foi se tornando ainda mais brasileira do que no dia em que saiu de um forno de barro.
No S�culo 19, ganhou da princesa Isabel a coroa de rainha. Era como se a princesa lhe dissesse "tome aquilo que jamais poderei usar". Quando fez-se a Rep�blica e o Estado resolveu se livrar da Igreja, os padres revidaram: fizeram de Aparecida, em 1904, a �nica monarca da nossa hist�ria.
Quando o ditador Get�lio Vargas quis a Igreja de novo por perto, em 1931, Aparecida percorreu as ruas do Rio e foi feita Padroeira do Brasil –no mesmo ano ergueu-se um Cristo de concreto no Corcovado. Mas Get�lio n�o era religioso e n�o soube o que fazer com a santa nas m�os. At� que um bispo lhe soprou baixinho: "� pra beijar!". A Igreja voltava a trocar beijos com o governo. E a intercess�o de Aparecida era providencial.
Tr�s d�cadas depois, nos tempos de Jo�o Goulart, os padres de Aparecida morriam de medo do comunismo. Ap�s com�cio a favor do presidente, disseram que ali estava "a fina flor da canalha esquerdista do Brasil". �s v�speras do golpe militar, receberam de bra�os abertos o deputado Ranieri Mazzili, que rezou aos p�s da santa e chegou a ser presidente por alguns dias.
Quando enfim derrubaram a democracia, os militares logo perceberam a for�a de Aparecida como s�mbolo nacional e resolveram tamb�m pedir uma ajudinha. O presidente M�dici pagou por algumas obras no santu�rio e ofereceu aos padres uma peregrina��o nacional. Em troca, daria � santa o t�tulo de "general�ssima das For�as Armadas".
Aparecida foi usada pelos milicos com a falta de escr�pulo que lhes era habitual. Mas os padres fizeram vista grossa: somando a ajuda do governo �s doa��es dos fi�is, estavam construindo a segunda maior bas�lica do mundo, e durante as in�meras viagens promovidas pela ditadura, a santa tinha se tornado muito mais famosa.
Depois, o arcebispo de Aparecida acabou se juntando ao grupo de bispos que denunciou as atrocidades cometidas pelos militares.
Em 1978, num dia de enorme tempestade, um rapaz com dist�rbio mental invadiu a bas�lica, arrancou Aparecida do altar e na fuga acabou deixando que ela ca�sse (ou foi de prop�sito?). A santinha precisou ser reconstru�da e ganhou uma cabe�a nova –que s� guardou alguns peda�os pequenos e farelos da imagem original. Ironicamente, foi uma cola argentina que salvou a nossa padroeira.
Desde ent�o, Aparecida nunca mais saiu em peregrina��o. E o papa Jo�o Paulo 2� inaugurou a tradi��o de visit�-la e beij�-la, repetindo o gesto dos primeiros fi�is, que entravam escondidos na capela para fazer prociss�es noturnas, erguer e beijar a santa.
Ao longo de 300 anos, por muito mais tempo que a bandeira nacional, o hino, o samba e o futebol, Aparecida tem sido um s�mbolo profundamente s�lido e revelador da nossa identidade brasileira. Ter ficado negra, ter sido roubada e cobi�ada pelos pol�ticos acabou fazendo da santinha que renasceu das cinzas, mais ainda, a cara do Brasil.
RODRIGO ALVAREZ � autor de "Aparecida: A Biografia da Santa que Perdeu a Cabe�a, Ficou Negra, Foi Roubada, Cobi�ada pelos Pol�ticos e Conquistou o Brasil" (Globo Livros).
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