Hist�ria de Gilgamesh, agora com nova tradu��o, antecipa aspectos da B�blia
Alex Wong/Getty Images/AFP | ||
![]() |
||
Em Washington, museu sobre a hist�ria da B�blia mostra v�rias vers�es do livro |
RESUMO Pela primeira vez traduzida do acadiano para o portugu�s, a "Epopeia de Gilg�mesh" compila em forma de poesia as aventuras do lend�rio soberano de Uruk, considerada uma das primeiras cidades da hist�ria. Professor da USP debate paralelos entre os epis�dios contidos nessa obra e os relatos da B�blia.
*
Uma hist�ria de milhares de anos nos conta sobre terr�vel decis�o divina: um dil�vio universal destruiria a humanidade e tudo que fora criado. Um bom homem e sua fam�lia, por�m, seriam poupados.
A divindade diz ao homem para tudo abandonar e construir um grande barco, dando-lhe instru��es e medidas precisas. Diz tamb�m que leve consigo alimentos e animais. A tempestade vem, devastadora; ao final, a embarca��o atraca no topo de uma montanha.
O homem solta alguns p�ssaros, mas eles n�o encontram terra seca onde pousar e retornam ao barco. Ap�s algum tempo, uma ave n�o volta: as �guas haviam baixado.
Poucos n�o reconheceriam nessas linhas a hist�ria de No�, uma das mais famosas passagens da B�blia. Esse, no entanto, � o resumo de um texto escrito muito antes de a narrativa hebraica existir.
No relato, Uta-napishtim —cujo nome significa "vida de dias longevos"—, um habitante da antiqu�ssima cidade de Shuruppak (fundada por volta de 3000 a.C. no sul do atual Iraque), narra a Gilgamesh, rei de Uruk, a proeza de ter sobrevivido ao dil�vio.
O epis�dio integra a "Epopeia de Gilg�mesh" [Aut�ntica, trad. de Jacyntho Lins Brand�o, R$ 59,80], uma compila��o em forma de poesia das aventuras do lend�rio soberano de Uruk (tamb�m localizada no sul do atual Iraque), considerada uma das primeiras cidades da hist�ria.
Em etapa anterior da saga, a morte de Enkidu, fiel companheiro do rei, havia imposto a Gilgamesh o assombro de sua pr�pria finitude, estimulando-o a buscar conselho do homem que escapara � inunda��o.
A tentativa, contudo, � v�. O poema conclui que o destino de todo ser humano, por mais elevado que seja, � o sombrio Mundo Inferior —a terra dos mortos. Gilgamesh retorna � espl�ndida Uruk e, ao final de sua jornada, a �nica eternidade por ele conquistada ser� a da mem�ria de seus atos. S�o as palavras que lhe dar�o a imortalidade.
Durante s�culos, as fa�anhas de Gilgamesh foram copiadas e recopiadas na superf�cie de tabletes de argila em escrita cuneiforme (em forma de cunhas).
Num primeiro momento, foram compostos epis�dios isolados, em l�ngua sum�ria —a primeira a ter sido registrada por escrito. Depois, diferentes escribas editam o material existente, aproveitando alguns trechos e descartando outros.
O resultado � o aparecimento de v�rias vers�es em acadiano, o idioma sem�tico que, junto com o sum�rio, formava a base da express�o lingu�stica na antiga Mesopot�mia (regi�o que corresponde hoje ao Iraque e parte da S�ria).
Esse processo se assemelha bastante � confec��o dos textos b�blicos, com a diferen�a de que, no caso da B�blia hebraica, nenhum manuscrito original foi conservado.
As centenas de tabletes e fragmentos preservados da "Epopeia" permitem acompanhar, ainda que parcialmente, um processo complexo em que os textos s�o transformados continuamente por obra de escribas que transmitem o saber.
ARQUEOLOGIA
A vers�o final dessa obra magistral deve ter sido formulada por volta de 1200 a.C. na Babil�nia (centro-sul do atual Iraque). Trabalho coletivo ou de um escritor inspirado? N�o sabemos ao certo. Mas a pr�pria tradi��o mesopot�mica consagrou o nome de um escriba e sacerdote, S�n-leqe-unninni, como sendo o respons�vel pela "Epopeia".
� a vers�o desse sacerdote que foi encontrada nos tabletes descobertos na biblioteca de Assurbanipal (688-627 a.C.), em N�neve (�ltima grande capital ass�ria, situada ao norte da Babil�nia), e que comp�e a quase totalidade do texto conhecido como a edi��o can�nica.
Inevit�vel sentir um calafrio ao saber que as aventuras de Gilgamesh permaneceram enterradas por mais de 2.000 anos no subsolo iraquiano e que quase continuaram ignoradas. Sem falar da afli��o de pensar no quanto dessa literatura pode ter sido esmigalhado para sempre pelos ataques do Estado Isl�mico a s�tios arqueol�gicos e museus na regi�o de N�neve.
Se hoje podemos ler esses velhos textos, � porque a hist�ria � estranhamente complexa. No s�culo 19, algumas pot�ncias da Europa, como a Fran�a e a Inglaterra, voltaram-se para o Imp�rio Otomano e para o leste asi�tico. Eram motivadas sobretudo por uma estrat�gia de fortalecimento pol�tico e por interesses econ�micos.
Esse mesmo movimento, entretanto, despertou atra��o intelectual in�dita pela antiguidade do Oriente Pr�ximo. Por volta de 1850, as escava��es arqueol�gicas nas antigas capitais ass�rias —Kalhum, Dur-sharruqin, N�neve— abarrotaram os museus da Europa com objetos e inscri��es cuneiformes que mal se conseguia decifrar.
Mais de 20 anos depois, o ingl�s George Smith procurava identificar e traduzir os milhares de fragmentos vindos de N�neve para o Museu Brit�nico, em Londres. Ele foi o primeiro a perder o f�lego quando, em 1872, deparou-se com a hist�ria do dil�vio desse verdadeiro "No� antes de No�" que foi Uta-napishtim. Smith n�o demorou a perceber que havia descoberto e decifrado parte —o 11� tablete— de uma obra maior, a "Epopeia de Gilgamesh".
A revela��o causou enorme impacto na Europa crist�. Pelas m�os do ingl�s, o mundo moderno recuperou alguns cap�tulos de uma saga perdida, que ele publicou como "Relato Caldeu do Dil�vio" -refer�ncia aos caldeus, nome usado na B�blia em rela��o a popula��o e governantes do Imp�rio Babil�nico.
Surgia uma nova disciplina: a assiriologia, campo que busca reconstituir a hist�ria da Mesopot�mia por meio da arqueologia e da decodifica��o dos milhares de documentos escritos em cuneiforme.
Nem os ass�rios nem os babil�nios eram completamente desconhecidos do Ocidente moderno. Textos cl�ssicos, como as "Hist�rias" de Her�doto, j� os mencionavam. Mas a grande fonte do imagin�rio ocidental sempre tinha sido a B�blia: a Torre de Babel, Abra�o e sua partida da Ur dos caldeus, as infinitas amea�as e agress�es da Ass�ria e da Babil�nia e, sobretudo, o ex�lio �s margens do rio Eufrates.
Com as novas descobertas no Oriente Pr�ximo, essas vis�es sedimentadas puderam ser comparadas e desafiadas. Os textos mesopot�micos permitiram escrever uma hist�ria mais diretamente documentada da Ass�ria e da Babil�nia e reinterpretar, sob nova luz, a pr�pria B�blia e suas narrativas.
DEBATE B�BLICO
O horizonte que se abria era extraordin�rio e, � claro, bastante amea�ador para aqueles que professavam uma leitura exclusivamente teol�gica da B�blia e n�o admitiam que sua verdade hist�rica fosse relativizada ou questionada. Era apenas o in�cio de um caloroso debate, que j� dura um s�culo e meio.
A narrativa do dil�vio �, em todo caso, a mostra perfeita de que a B�blia, tal qual a conhecemos, n�o existiria sem a Ass�ria e a Babil�nia. As hist�rias e as mitologias b�blicas foram largamente influenciadas pelo ambiente cultural do Oriente Pr�ximo no primeiro mil�nio antes de Cristo, em particular pela sofisticada produ��o liter�ria mesopot�mica.
Esse tipo de intera��o fica claro na exist�ncia dos dois relatos bem diferentes sobre a cria��o no G�nesis. No primeiro deles, Deus cria o homem e a mulher conjuntamente, atrav�s da palavra, depois de ter concebido todo o resto. No outro, Deus molda antes o homem, com argila, depois gera os animais e s� ent�o cria a mulher, a partir da costela do homem.
� demonstra��o de que as variadas cosmogonias (mitos sobre a origem do universo) e antropogonias (narrativas de origem da humanidade) que circulavam na regi�o foram relidas pelos autores b�blicos e adaptadas � vis�o monote�sta que se consolidava no juda�smo.
Al�m desse fluxo de motivos culturais, os conflitos brutais entre as pot�ncias mesopot�micas e os pequenos reinos da regi�o s�rio-palestina prepararam o terreno no qual grande parte dos textos b�blicos foi elaborada ou reelaborada.
Em 721 a.C., ao devastar o Reino de Israel, a Ass�ria criou um v�cuo que permitiu a ascens�o e a consolida��o do Reino de Jud�, ao sul. At� ent�o, Jud� era ator secund�rio: mais pobre materialmente, mais fraco politicamente e bem menos refinado culturalmente do que o desaparecido Reino de Israel.
Com essa centraliza��o pol�tica e religiosa em Jerusal�m, Jud� beneficiou-se da heran�a intelectual de Israel e p�de se reivindicar como leg�timo herdeiro da alian�a com o deus Yahweh.
Em 587 a.C., entretanto, foi a vez de Jud� sucumbir diante dos ataques da Babil�nia. A deporta��o de parte da popula��o juda�ta para as terras babil�nicas, a destrui��o do templo de Jerusal�m e o fim da dinastia dav�dica formaram os elementos principais de uma crise traum�tica, que p�s em risco a identidade social e religiosa da comunidade e at� sua exist�ncia.
Foi a rea��o ao trauma ex�lico que levou � formula��o de muitas das narrativas b�blicas. A elite dos exilados reinventou seu passado e seus ancestrais: de Abra�o a Mois�s, da cria��o do mundo � cat�strofe da conquista babil�nica, passando pelo �xodo do Egito, pela conquista de Cana� e por um imagin�rio reino unificado, inacreditavelmente rico e poderoso.
Foi essa vis�o —favor�vel a Jud�, em detrimento de Israel— que forneceu a chave para que os judeus exilados na Babil�nia interpretassem sua situa��o longe da terra prometida e elaborassem um projeto de futuro baseado no retorno.
Nos s�culos seguintes, os redatores b�blicos beberam abundantemente das fontes mesopot�micas para construir suas pr�prias mem�rias, reinventar sua identidade de grupo e reformular sua concep��o de divindade como um deus �nico.
A "Epopeia de Gilg�mesh" � a obra mais conhecida da literatura mesopot�mica, um texto fundamental que ajuda a entender os primeiros passos do pensamento humano. Ela finalmente chega ao leitor brasileiro diretamente do acadiano, em trabalho herc�leo de tradu��o de Jacyntho Lins Brand�o, professor da UFMG.
Incorporando as mais recentes edi��es cr�ticas, Brand�o buscou a maior fidelidade ao sentido original, sem abrir m�o de oferecer, a cada verso, o m�ximo da sonoridade e do ritmo do poema. Tarefas dific�limas quando se trata de verter uma l�ngua morta h� 2.000 anos.
*
"EPOPEIA DE GILG�MESH"
Trechos da tradu��o de Jacyntho Lins Brand�o
(I: 37-48)
Alto � Gilg�mesh, perfeito, terr�vel:
Abriu passagens nas montanhas,
Cavou cisternas nas encostas
do monte,
Atravessou o mar, o vasto oceano, at� onde nasce Sh�mash,
Palmilhou os quatro cantos, em
busca de vida,
Chegou, por sua for�a, ao remoto
Uta-nap�shti,
Rep�s os templos arrasados
pelo dil�vio,
Instituiu ritos para toda a
humanidade.
Quem h� que a ele se iguale
em realeza
E como Gilg�mesh diga: este
sou eu, o rei?
A Gilg�mesh, quando nasceu, renome lhe deram:
Dois ter�os ele � um deus, um ter�o � humano.
(XI: 128-139)
Seis dias e sete noites
Veio vento, tempestade, vendaval, dil�vio.
O s�timo dia ao romper,
Amainou o vendaval (...)
Amainou o dil�vio sua guerra.
O que lutou como em trabalho de parto descansou, o mar.
Calou-se a tormenta. O dil�vio
estancou.
Olhei o dia: posto em sil�ncio
E a totalidade dos homens tornara-se barro.
Como um terra�o estava liso o prado.
Abri a claraboia, uma luz caiu-me sobre as t�mporas.
Abaixei-me, sentei e chorei,
Sobre as t�mporas vinham-me as l�grimas.
*
MARCELO REDE, 52, doutor em assiriologia pela Universidade de Paris 1 - Panth�on-Sorbonne, � professor de hist�ria antiga da USP e autor de "Fam�lia e Patrim�nio na Antiga Mesopot�mia" (Mauad).
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade