Saudado na Flip, Lima Barreto atacava a arrog�ncia e o preconceito da elite
RESUMO Homenageado da Flip, o carioca Lima Barreto fez carreira num momento de expans�o da alfabetiza��o no Brasil e de discuss�o sobre formas de atingir o novo leitorado. Op�s-se ferozmente ao hermetismo de parte de seus colegas e viu no advento da sociedade de massas a chance de propor mudan�as de mentalidade.
Reprodu��o |
O escritor carioca Lima Barreto (1881-1922), autor de "Clara dos Anjos" e "O Homem que Sabia Javan�s" |
Ao fazer um balan�o de carreira em sua �ltima entrevista, o escritor M�rio de Andrade (1893-1945) afirmou:
"Sempre considerei o problema m�ximo dos intelectuais brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo. Esta no��o prolet�ria da arte [...] foi que me levou, desde o in�cio, �s pesquisas de uma maneira de exprimir-me em brasileiro. �s vezes com sacrif�cio da pr�pria obra de arte".
Lima Barreto - Triste Vision�rio |
Lilia M. Schwarcz |
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A conversa n�o chegara a esse tema aleatoriamente. O entrevistador era Francisco de Assis Barbosa, autor da not�vel biografia "A Vida de Lima Barreto" (Jos� Olympio), de 1952, s� recentemente rivalizada por "Lima Barreto - Triste Vision�rio" [Companhia das Letras, 704 p�gs., R$ 69,90, R$ 39,90 em e-book], resultado de dez anos de pesquisa de Lilia Moritz Schwarcz.
Pouco antes, Barbosa tinha sido incumbido de organizar as obras de Barreto para a Livro de Bolso, editora especializada no formato que, na d�cada de 1930, fizera a fama de casas como a alem� Albatross e a brit�nica Penguin.
Editar Lima Barreto (1881-1922) a pre�os populares era simb�lico, j� que, segundo Barbosa, o autor carioca havia sido um dos poucos a combater o escapismo aristocr�tico dos que entendiam que a cultura devia ser privil�gio de uma confraria de eleitos.
Para M�rio de Andrade e os modernistas, por sua vez, Lima Barreto era uma refer�ncia pela limpeza de sua prosa, de estilo direto, antilitera?ria para a �poca –uma dic��o que respondia a um contexto mais amplo: o da inser��o do escritor e da literatura na emergente sociedade de massas.
No Brasil de Lima Barreto, surgia um novo p�blico leitor alfabetizado, espalhado por v�rias cidades do pa�s. Esse contingente constitu�a um dos principais motores de expans�o da imprensa, especialmente de revistas populares de circula��o nacional, como "O Malho", "Fon-Fon" e "Careta", todas criadas na primeira d�cada do s�culo 20.
Barreto passaria a publicar nessas revistas colabora��es regulares, as quais ganharam h� pouco nova proje��o com as colet�neas "S�tiras e Outras Subvers�es" [Penguin-Companhia, 552 p�gs., R$ 44,90, R$ 30,90 em e-book], que revelou 164 textos in�ditos escritos sob pseud�nimos, "Cr�nicas da Bruzundanga" [e-gal�xia, R$ 20,90 em e-book], ambas organizadas por Felipe Botelho Corr�a, e "Os Bruzundangas - Numa e a Ninfa" [Carambaia, 512 p�gs., R$ 129,90], organizada por Beatriz Resende e ilustrada por Fernando Vilela.
Com suas contribui��es � imprensa, o escritor mordaz participou ativamente do embate p�blico de ideias daquele momento da Rep�blica Velha.
VANGUARDA ILEG�VEL
Um dos aspectos mais importantes da transforma��o das multid�es do s�culo 19 nas massas do s�culo 20 foi a j� citada expans�o da alfabetiza��o. Naquele momento, a imprensa popular avultou-se como amea�a ao campo liter�rio estabelecido, pois fez chegar o texto escrito a um leitorado ainda pouco familiarizado ou treinado para lidar com as conven��es liter�rias.
Essa revolu��o dividiu os meios intelectuais quanto � rela��o do escritor com a nova ordem social. Um dos polos da contenda temia uma suposta ditadura das massas, contra a qual os intelectuais deveriam declarar guerra –em geral por meio de uma literatura herm�tica e pouco acess�vel.
Essa produ��o obscura foi saudada na Europa como modernismo de vanguarda, segundo alfineta John Carey em "The Intellectuals and the Masses" (os intelectuais e as massas), pol�mico livro de 1992. Ali, o professor de Oxford n�o poupou quase ningu�m da aristocracia liter�ria local, mas disparou sua muni��o mais pesada contra a ficcionista e ensa�sta Virginia Woolf (1882-1941).
Ao acusar Woolf e seus pares do c�rculo de Bloomsbury de um esnobismo cruel com os segmentos menos educados, Carey ataca tanto a conduta daqueles literatos na vida pessoal –registra com desgosto a entrada no di�rio de Woolf sobre a conversa prosaica de "vadiazinhas ordin�rias" entreouvida num banheiro– quanto o modo como o homem e a mulher humildes s�o retratados em suas obras.
ABAIXO A ARROG�NCIA
No outro extremo das rea��es aninhavam-se os intelectuais que entendiam a sociedade de massas como um instrumento poderoso de que o escritor dispunha para propor mudan�as nas mentalidades. Era esse o vi�s da milit�ncia de Lima Barreto.
Curiosamente contempor�neo da cena de Bloomsbury, mas na belle �poque carioca, o escritor tamb�m refletia sobre a ascens�o das massas –e com a verve cr�tica e sat�rica pela qual tem sido justamente celebrado em publica��es recentes e em eventos como a Flip deste ano.
Lima Barreto parecia farejar no ar (al�m de mais de uma vez ter sentido na pele, literalmente) o preconceito e a ol�mpica arrog�ncia de uma certa elite. Se aqui, na realidade distante do Brasil da Rep�blica Velha, ningu�m ouvira falar de Virginia Woolf, n�o escaparam � fina percep��o do autor alguns esp�cimes locais de jovens aristocratas –Woolf, admita-se, oferecia ao menos a contrapartida de seu talento liter�rio.
"Que sabe uma mulher, uma 'melindrosa', ali da Avenida, a respeito da dor de uma pobre rapariga criada de servir?", atacou em "As Mulheres na Academia", cr�nica de fevereiro de 1921 para a revista "Careta". "Nada. Entretanto, ela esteve no Col�gio Sion e fala mais ou menos o franc�s e, do resto dos homens e mulheres que n�o s�o da sua roda, ela tem um grande desprezo. Para ela, essa gente n�o tem alma."
Para al�m do fato de que se antecipava ao debate feminista, e ainda o matizava com a quest�o de classe, lan�ando m�o de provoca��es que mesmo hoje causariam esp�cie, Barreto se insurgia, sobretudo, contra a cultura de elite da Primeira Rep�blica. Desancava pr�ticas e representa��es dominadas por paradigmas aristocr�ticos de deriva��o europeia e adaptadas aos �mpetos de moderniza��o da vida urbana da capital.
LETRAS NOBRES
Houve ainda, entre os intelectuais, quem reagisse at� � expans�o da educa��o p�blica. Muitos chegaram a sugerir que as massas n�o deveriam ser alfabetizadas, ou seja, que somente os intelectuais deveriam dominar a esfera da cultura escrita, o aprendizado formal permanecendo prerrogativa dos mais equipados a produzir obras grandes e duradouras.
O pol�mata franc�s Gustave Le Bon (1841-1931) chegou a afirmar que havia evid�ncias estat�sticas de que a criminalidade aumentava com a dissemina��o da educa��o e de que a escolariza��o criava inimigos da sociedade.
A eugenia, conforme tamb�m observa John Carey, foi uma das muitas maneiras pelas quais os intelectuais reagiram � ascens�o das massas naquela virada de s�culo.
Em 1905, antes mesmo da publica��o de seu primeiro livro, Barreto escreveu em seu di�rio �ntimo:
"Vai se estendendo, pelo mundo, a no��o de que ha? umas certas ra�as superiores e umas outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transit�ria, e? eterna e intr�nseca a? pr�pria estrutura da ra�a. Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas ra�as s�o um v�cio social, uma praga e n�o sei que coisa feia mais".
E, como de costume, embrenhou-se no humor, mesmo tratando do mais grave dos temas:
"Tudo isto se diz em nome da ci�ncia e a coberto da autoridade de s�bios alem�es. [...] O que se diz em alem�o e? verdade transcendente. Por exemplo, se eu dissesse em alem�o o quadrado tem quatro lados seria uma coisa de um alcance extraordin�rio, embora no nosso rasteiro portugu�s seja uma banalidade e uma quase-verdade".
A ideia de uma suposta superioridade intelectual alem� d� a deixa para a impressionante previs�o sobre o perigo dessas ideias eug�nicas que "ainda n�o sa�ram dos gabinetes e laborat�rios, mas, amanh�, [...] cair�o sobre as rudes cabe�as das massas".
Lima Barreto conclui a anota��o de forma sinistra: "Nossos liberal�ssimos tempos ver�o uns novos judeus". A Primeira Guerra (1914-18) s� come�aria dali a nove anos; a Segunda (1939-45), mais de tr�s d�cadas depois.
EUGENIA LITER�RIA
Mais sutil, embora n�o menos efetiva, era a ideologia eug�nica aplicada ao campo simb�lico da escrita e, em particular, da literatura.
Lima Barreto implicava particularmente com o academicismo praticado por fil�logos e gram�ticos, gente que limitava seu interesse pela cultura aos livros e � vis�o colonial, evitando o contato cotidiano com as pessoas:
"Criaram uma patologia lingu�stica e deram em estud�-la, j� em artigos, j� em op�sculos e livros. Termos de argot, de cal�o, constru��es populares, modismos profissionais, eles se puseram a analisar, a explicar, ao jeito do que fazem os m�dicos com as doen�as, mol�stias, les�es etc.". (Em "M�dicos e Gram�ticos", publicado na "Careta", em novembro de 1922). Pura eugenia, enfim.
O jovem Lima Barreto planejava de partida que sua obra se debru�asse sobre quest�es envolvendo os negros e a sociedade brasileira, com livros de fic��o que tratassem da hist�ria da escravid�o no Brasil e de suas consequ�ncias.
Contudo, a esse compromisso inicial com uma literatura negra juntaram-se outras preocupa��es, como a luta contra a referida "eugenia da linguagem", com a qual v�rios literatos de sua �poca foram coniventes. Tal inquieta��o inevitavelmente desaguava no debate, at� hoje inconcluso, sobre a inclus�o das massas na vida intelectual brasileira pela via da educa��o p�blica.
CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e em Cambridge, � jornalista e tradutor.
FELIPE BOTELHO CORR�A, 34, � doutor pela Universidade de Oxford, pesquisador e professor no King's College London.
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