Um s�culo de cosmologia e ainda n�o sabemos de que � feito o Universo
RESUMO Em artigo de 1917, Einstein fazia a primeira descri��o matem�tica do Universo como um todo. Era a certid�o de nascimento da cosmologia relativ�stica. A nova �rea mergulharia de sa�da em equa��es, em seguida flertaria com a filosofia, at� chegar � maturidade ancorada em observa��es astron�micas.
Manuela Eichner | ||
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"Vou conduzir o leitor por uma estrada que eu mesmo percorri, �rdua e sinuosa." A frase –que tem algo da ess�ncia do hoje cl�ssico "A Estrada n�o Percorrida" (1916), do poeta norte-americano Robert Frost (1874-1963)– est� em um artigo cient�fico publicado h� cem anos, cujo teor constitui um marco hist�rico da civiliza��o.
Pela primeira vez, cerca de 50 mil anos depois de o Homo sapiens deixar uma m�o com tinta estampada em uma pedra, a humanidade era capaz de descrever matematicamente a maior estrutura conhecida: o Universo. A fa�anha intelectual levava as digitais de Albert Einstein (1879-1955).
Ao terminar aquele artigo de 1917, o f�sico de origem alem� escreveu a um colega dizendo que o que produzira o habilitaria a ser "internado em um hosp�cio". Mais tarde, referiu-se ao arcabou�o te�rico que havia constru�do como um "castelo alto no ar".
O Universo que saltou dos c�lculos (e sim, das idiossincrasias cient�ficas e filos�ficas) de Einstein tinha tr�s caracter�sticas b�sicas: era finito, sem fronteiras e est�tico –o derradeiro tra�o alimentaria debates e traria arrependimento a Einstein nas d�cadas seguintes.
Em "Considera��es Cosmol�gicas na Teoria da Relatividade Geral", publicado em fevereiro de 1917 nos "Anais da Academia Real Prussiana de Ci�ncias", o cientista construiu (de modo muito visual) seu castelo usando as ferramentas que ele havia forjado pouco antes: a teoria da relatividade geral, finalizada em 1915, esquema te�rico j� classificado como a maior contribui��o intelectual de uma s� pessoa � cultura humana.
Esse bloco matem�tico impenetr�vel (mesmo para f�sicos) nada mais � do que uma teoria que explica os fen�menos gravitacionais. Por exemplo, por que a Terra gira em torno do Sol ou por que um buraco negro devora avidamente luz e mat�ria.
Com a introdu��o da relatividade geral, a teoria da gravita��o do f�sico brit�nico Isaac Newton (1642-1727) passou a ser um caso espec�fico da primeira, para situa��es em que massas s�o bem menores do que as das estrelas e em que a velocidade dos corpos � muito inferior � da luz no v�cuo (300 mil km/s).
Entre essas duas obras de respeito (de 1915 e de 1917), impressiona o fato de Einstein ter achado tempo para escrever uma pequena joia, "Teoria da Relatividade Especial e Geral", na qual populariza suas duas teorias, incluindo a de 1905 (especial), na qual mostrara que, em certas condi��es, o espa�o pode encurtar, e o tempo, dilatar.
Tamanho esfor�o intelectual e total entrega ao racioc�nio cobraram seu ped�gio: Einstein adoeceu, com problemas no f�gado, icter�cia e �lcera. Seguiu debilitado at� o final daquela d�cada.
Se deslocados de sua �poca, Einstein e sua cosmologia podem ser facilmente vistos como um ponto fora da reta. Por�m, a historiadora da ci�ncia brit�nica Patricia Fara lembra que aqueles eram tempos de "cosmologias", de vis�es globais sobre temas cient�ficos. Ela cita, por exemplo, a teoria da deriva dos continentes, do ge�logo alem�o Alfred Wegener (1880-1930), marcada por uma vis�o cosmol�gica da Terra.
Fara d� a entender que v�rias �reas da ci�ncia, naquele in�cio de s�culo, passaram a olhar seus objetos de pesquisa por meio de um prisma mais amplo, buscando dados e hip�teses em outros campos do conhecimento.
ESTRADA
Em seu cl�ssico de 1916, Robert Frost escreveu: "Escolhi a [estrada] menos percorrida. Isso fez toda a diferen�a". Einstein fez tamb�m uma op��o (n�o sem consequ�ncias): a simplicidade. Ele construiu o modelo mais simples poss�vel que explicasse os (poucos) dados observacionais da astronomia sobre o Universo –que, � �poca, era praticamente sin�nimo de Via L�ctea.
Construir um modelo de Universo significa achar uma solu��o para um conjunto de dez equa��es matem�ticas complexas, o "cora��o" da relatividade geral. Mas, para isso, � preciso partir de certas premissas. Foi aqui que a vis�o de mundo de Einstein (com seu quinh�o de preconceitos e idiossincrasias) entrou em cena.
Primeiramente, por quest�es f�sicas (e est�ticas), ele se livrou do infinito que assombrava o Universo newtoniano. Para isso, fez com que o espa�o se dobrasse sobre si mesmo, dando origem a uma geometria que alude � superf�cie de uma esfera, objeto matem�tico finito e sem fronteiras.
Einstein tamb�m imaginou que, em larga escala, a distribui��o de massa de seu Universo fosse homog�nea, mesmo que aqui e ali existissem "calombos" (estrelas, gal�xias etc.). Outra premissa bastante razo�vel: o Universo seria isotr�pico, ou seja, sem dire��o privilegiada.
Talvez por preconceito filos�fico Einstein tenha tornado seu Universo est�tico. O principal motivo aqui � algo controverso desde os tempos de Newton: a mat�ria do Universo se atrairia, e ele entraria em colapso. Para o f�sico brit�nico, Deus evitaria essa cat�strofe c�smica. Einstein livrou-se do inconveniente ao injetar um termo adicional em suas equa��es: a constante cosmol�gica agiria como uma antigravidade, repelindo a mat�ria, em vez de atra�-la. Desse modo, pux�o gravitacional e repuls�o estariam em equil�brio, e o Universo seria est�tico.
A publica��o desses resultados deu novos rumos a uma �rea que, ainda em 1913, havia sido classificada como prolixa, pretensiosa, confusa e com total falta de controle sobre o aparato matem�tico. Nascia a cosmologia relativ�stica, na forma da primeira vis�o matem�tica do Universo como um todo.
Einstein n�o estava interessado em descrever a (ou uma) arquitetura do Universo. O que o levou, ent�o, a assinar o artigo de 1917? N�o h� muito consenso entre historiadores da �rea.
H� quem defenda que os resultados daquele ano s�o subprodutos da obsess�o de Einstein em saber se era v�lido ou n�o, no contexto da relatividade geral, o chamado princ�pio de Mach, refer�ncia ao f�sico-fil�sofo austr�aco Ernst Mach (1838-1916), para quem a in�rcia era resultado da intera��o de um corpo com a totalidade de mat�ria do Universo (e n�o com o espa�o absoluto newtoniano).
Parece, no entanto, haver uma certeza em rela��o � vis�o de mundo de Einstein naquele momento: sua avers�o a modelos din�micos, ou seja, universos que se expandissem ou se contra�ssem. Por ironia do destino, a pessoa que o convenceu a adentrar o terreno da cosmologia foi a que arrancou das equa��es da relatividade, ainda em 1917, um modelo de Universo n�o est�tico.
O Universo do holand�s Willem de Sitter (1872-1934), possivelmente seu mais importante parceiro na caminhada em dire��o � cosmologia relativ�stica, era ex�tico, no m�nimo. N�o tinha massa alguma, mas o espa�o se expandia, por conta de uma constante cosmol�gica diferente de zero. Al�m da expans�o, outro dissabor para Einstein: o princ�pio de Mach parecia n�o valer no Universo de seu colega astrof�sico.
Para historiadores da �rea, a cosmologia do s�culo passado orbitou em torno de um s� tema: entender os universos de Einstein e De Sitter, bem como as posteriores varia��es desses modelos.
EXPANS�O
Para a cosmologia relativ�stica, a d�cada de 1920 foi marcada por: 1) tentativas de extrair realidade plaus�vel da abstra��o matem�tica que embasava os modelos de Universo; 2) descoberta, em 1923, de que o Universo era n�o s� muito mais do que simplesmente a Via L�ctea mas tamb�m que estava em expans�o (1929), dois resultados obtidos pelo astr�nomo norte-americano Edwin Hubble (1889-1953).
Ao tomar conhecimento dos resultados de Hubble, Einstein abriu m�o do termo matem�tico que havia inclu�do � for�a em suas equa��es para frear o Universo. Classificou a constante cosmol�gica como "o maior erro" de sua carreira.
Poucos anos antes, Einstein havia sido r�gido ao atacar (com argumentos equivocados) resultados do in�cio da d�cada de 1920 obtidos por Alexander Friedmann (1888-1925). Neles, o matem�tico russo detalhava modelos em que o Universo ou se expandia, ou se contra�a, sem a necessidade da constante cosmol�gica.
Ironicamente, em 1930, um resultado mostraria que o modelo de Einstein era inst�vel: bastaria um diminuto desvio da tal uniformidade para que o Universo passasse a se contrair ou a se expandir.
A expans�o do Universo de De Sitter foi levada a s�rio por Georges Lema�tre (1894-1966). Em 1927, o padre belga estabeleceu um Universo que n�o s� se expandia como tamb�m que tivera um in�cio, denominado "�tomo primordial". A conclus�o refor�ava um argumento teol�gico: "No princ�pio, Deus criou os c�us e a Terra".
A primeira rea��o de Einstein foi a de sempre: desconfian�a em extrapolar as equa��es da relatividade para situa��es extremas –como as daquele ent�o suposto in�cio do Universo.
Ap�s a sua chegada nos EUA, em 1933, o f�sico publicaria seu �ltimo artigo com um modelo cosmol�gico. A partir da�, enfatizaria outro programa cient�fico (a unifica��o da gravita��o com o eletromagnetismo) e abra�aria causas como paz mundial, defesa das liberdades individuais e luta contra o racismo nos EUA.
REVANCHE
O artigo de 1917 havia arrancado a cosmologia da seara da filosofia para a da f�sica. Na d�cada de 1930, a primeira ensaiaria uma revanche. N�o � demais lembrar que o alem�o Immanuel Kant (1724-1804) tinha oferecido contribui��es importantes, ainda que esquecidas, para a concep��o evolutiva do Universo.
A filosofia penetrou a cosmologia pelas ra�zes. O caso mais c�lebre � o do cosm�logo brit�nico Edward Milne (1896-1950), cujas ideias inclu�am o chamado "princ�pio cosmol�gico": o Universo teria que ser necessariamente homog�neo e isotr�pico. A cosmologia de Milne, classificada como "metate�rica", n�o teve grande aceita��o � �poca, mas deixou descendentes indiretos na d�cada seguinte, na forma de um modelo de Universo sem in�cio no tempo.
A quest�o na d�cada de 1930 pode ser resumida assim: para a cosmologia, esse embasamento filos�fico era uma quest�o de "boa sa�de" do campo ou uma "maldi��o" para uma cultura (ci�ncia) que, a muito custo, havia se desvencilhado da filosofia?
Esses debates filos�ficos ganharam contornos mais amplos. E passou-se a discutir se a pr�pria cosmologia era ou n�o ci�ncia. Muitos a classificavam como "pseudoci�ncia" ou "quase-ci�ncia". Impressiona ver que essas d�vidas persistiram, com certa for�a, at� o final do s�culo passado.
Na cosmologia, a partir da d�cada de 1930 e com alguma "in�rcia" nas seguintes, repetia-se um ceticismo que j� havia marcado a f�sica qu�ntica, teoria do Universo at�mico e subat�mico. Patricia Fara sintetiza essa vis�o de mundo assim: "As equa��es descrevem, e a filosofia explica".
Nos anos 1930, foram os pr�prios cosm�logos (e n�o os fil�sofos) que trataram de dar roupagem metaf�sica a um arcabou�o matem�tico que se tornava cada vez mais amplo e s�lido.
A cosmologia adentrou a segunda metade do s�culo passado com uma estrutura matem�tica madura, mas ainda impregnada de metaf�sica (princ�pios a priori, conceitos escolhidos por julgamento est�tico ou teol�gico etc.) e empobrecida por pouqu�ssimos dados observacionais.
Como apontou o f�sico e historiador da ci�ncia holand�s Abraham Pais (1918-2000), o campo estava minado por certa especula��o aristot�lica, mesclada com princ�pios que pareciam vir de uma experi�ncia art�stica mais do que cient�fica.
ETERNIDADE
As reverbera��es das ideias de Milne podem ser captadas, por exemplo, no modelo apresentado em 1948 pelos austr�acos Hermann Bondi (1919-2005) e Thomas Gold (1920-2004), em coautoria com o brit�nico Fred Hoyle (1915-2001): um Universo sem in�cio, eterno. Uma estrutura que n�o se altera no tempo e que sempre existiu e existir�. Era o Universo do estado estacion�rio.
De certa forma, tratava-se de uma tentativa de dar uma resposta a um grande problema da cosmologia � �poca: a idade extra�da dos modelos era muito menor do que aquela apontada pelos dados experimentais (radioatividade, por exemplo). Esse problema s� seria resolvido na d�cada de 1960, quando a equa��o de Hubble, que media a expans�o do Universo, passaria por um aperfei�oamento.
O Universo do estado estacion�rio livra-se de um inc�modo: a discuss�o sobre uma origem, que muitos cosm�logos e fil�sofos consideravam sem sentido. Mas carregava consigo problemas s�rios: propunha que haveria fontes de cria��o de mat�ria no Universo, para compensar a "dilui��o" sofrida por esta com a expans�o do espa�o. Onde estariam esses "criadouros"? Como funcionariam? Perguntas nunca respondidas satisfatoriamente pelos autores e seguidores do modelo.
H� aqui um aspecto interessante. Apesar de os dados observacionais enfraquecerem o Universo do estado estacion�rio, a teoria ganhou apelo popular –o que mostra que a divulga��o cient�fica nem sempre serve a bons prop�sitos.
A principal raz�o disso era a capacidade de Hoyle de transmitir, em linguagem simples, por meio de livros, artigos ou programas de r�dio, as caracter�sticas de seu modelo eterno. E de ressaltar as impropriedades do concorrente, a teoria do Universo com um in�cio, o Big Bang –termo cunhado por ele n�o sem ironia.
No mesmo per�odo, a cosmologia come�ou a ganhar o refor�o de outras �reas, como a f�sica nuclear. O caso emblem�tico aqui � o do ucraniano George Gamow (1904-1968), que teorizou sobre os primeiros tr�s minutos depois do Big Bang.
MIST�RIOS ESCUROS
Hoje, a cosmologia �, sem d�vida, uma �rea cient�fica. No entanto, h� quem reprove o modo "insidioso" como a filosofia ainda nela se embrenha.
Casos sempre citados s�o os da teoria dos universos paralelos e das hip�teses sobre a natureza (ainda enigm�tica) da mat�ria e da energia escuras, as quais respondem por cerca de 95% do conte�do do Universo. Do que o Universo � formado? Essa, talvez, seja a pergunta cient�fica (e filos�fica) mais profunda da atualidade.
Por sua vez, a relatividade geral ganhou vitalidade com resultados te�ricos –como os do matem�tico brit�nico Roger Penrose– e experimentais (quasares, pulsares, buracos negros etc.) obtidos na d�cada de 1960. De certa forma, essa teoria come�ava a sair do isolamento que lhe havia sido imposto ainda na d�cada de 1920.
Dois fatos experimentais foram marcantes para a cosmologia do s�culo passado: em 1965, descobriu-se um "eco" do Big Bang, "ru�do" que se manifesta na forma de uma radia��o extremamente t�nue, mas onipresente no Universo.
A dita radia��o c�smica de fundo em micro-ondas (RCFM) deu suporte para a assumida uniformidade do Universo adotada nos modelos e trouxe maturidade e robustez � cosmologia –a partir dali, tamb�m uma ci�ncia experimental. Para muitos, a RCFM foi o "�ltimo prego no caix�o" da teoria do estado estacion�rio.
O segundo marco: em 1998, constatou-se, com base na observa��o da luz de estrelas explosivas (supernovas do tipo 1A), que o Universo n�o s� se expandia como o fazia aceleradamente.
E como explicar essa misteriosa acelera��o? A ironia � que a resposta mais aceit�vel � o "maior erro" de Einstein: a constante cosmol�gica seria a "antigravidade" que aceleraria o Universo.
Hoje, a maioria dos cosm�logos aceita que o Universo tem cerca de 13,8 bilh�es de anos, nasceu de uma explos�o (Big Bang) e sofreu uma expans�o vertiginosa nos primeiros instantes (10-35 segundos) de vida, fen�meno que explicaria a impressionante uniformidade de temperatura em todas as dire��es.
Com aceleradores cada vez mais potentes, hoje a f�sica de part�culas d� contribui��es seminais � cosmologia, ao reproduzir em laborat�rio, em diminutos volumes de espa�o, aqueles instantes iniciais do Universo, com densidades e temperaturas alt�ssimas.
A ironia (mais uma) � que o Universo est� em expans�o, e a constante cosmol�gica voltou. O "castelo no ar" assentou-se sobre rocha s�lida; mas a tal "estrada �rdua e sinuosa", percorrida h� cem anos por Einstein, parece ter destinos enigm�ticos.
ANTONIO AUGUSTO PASSOS VIDEIRA, 52, � professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor visitante do Centro Brasileiro de Pesquisas F�sicas.
C�SSIO LEITE VIEIRA, 56, trabalha na revista "Ci�ncia Hoje" e na comunica��o social do Centro Brasileiro de Pesquisas F�sicas.
MANUELA EICHNER, 32, � artista visual.
Livraria da Folha
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